Para onde vão as lembranças? - Artemísia #48
Perdi todas as fotos da minha viagem após o roubo do meu celular
Fui roubada no que seria minha última noite em Cali. Levaram meu celular da minha bolsa de crochê rosa - a única que tenho para sair durante o mochilão - sem que eu notasse. Tenho quase certeza que foi durante a minha última dança na minha programação caleña favorita: a calle de la salsa.
A pessoa que se aproveitou do meu momento de distração o fez com muita destreza, enquanto eu dançava com o homem que foi meu primeiro caleño, aquele que minha intuição gritou “corre!” logo nas primeiras vezes (e sobre o qual escrevi em outra edição). Depois de tudo o que aconteceu, realmente nos tornamos amigos. Ele foi muito importante para mim, afinal, e entrou na minha vida por algum motivo. Fechei ciclos naquele dia e naquela dança, com muita literalidade.
Ao me dar conta que o aparelho não estava onde o deixei após filmar uma canção que todos entoavam a plenos pulmões, quase fiquei sem ar. Quis acreditar, por breves segundos, que algum amigo o tinha em seu bolso, que havia sido um engano, que encontraria o objeto no chão. A negação nem foi tanto pelo celular em si, mas porque, junto com ele, me despedi de três coisas muito importantes:
Meu chip brasileiro. O problema: todas as minhas contas estão vinculadas àquele número, o que acrescentou uma dificuldade extra para recuperar acesso a e-mail, redes sociais e contas bancárias - e, especificamente, ao Apple ID, que só acessei hoje de manhã com a ajuda da minha irmã.
Minha sensação de segurança e a ingênua certeza de que, na minha cidade favorita do mundo, enquanto eu estivesse feliz, nada de mau poderia acontecer. “Volte três casas; a blindagem emocional é sempre indispensável”, foi a mensagem que recebi.
Minhas fotos. Descobri, ao sincronizar os arquivos do antigo telefone, que a nuvem salvou as imagens só até o primeiro dia da viagem, quando eu estava em Lima, capital do Peru.
Mas nem tudo foi ruim. A Vida, essa com vê maiúsculo, me pede coragem, desapego, fluidez. Faço muito drama, mas aceito. Colho os aprendizados, confiando que há um motivo para isso ter ocorrido - embora ainda encoberto.
Cali é um dos meus lugares no mundo. Não é o único, é um dos tantos que ainda vou conhecer. A cidade ressoa com uma energia que estava esperando ter espaço para brilhar dentro de mim: uma energia associada ao fogo, à dança, à vontade de viver e gozar os prazeres do corpo.
Queria ficar? Queria. Já quero voltar? Quero. Mas outra parte minha sussurra: “Calma, tem mais mundo, tem mais vida. Você vai voltar na hora certa, tá tudo bem”. Senti de seguir viagem. O meu corpo me dava sinais, e as sincronicidades também. O roubo do celular não deixou mais dúvidas: era hora de ir - e de colocar a mochila nas costas mais leve, aprendendo a fluir mesmo com um percalço que segue gerando dor de cabeça e uma tristeza inédita ao longo da viagem.
Perder todas as fotos da viagem foi um golpe forte. Sou apegada a memórias, a registros. Quero lembrar de tudo, porque tenho medo de esquecer - literalmente. Tenho receio de, aos 80 anos, não conseguir juntar todas as peças da minha vida, de não deixar contado ou registrado aos meus netos - e a mim mesma - quem eu fui. Em um movimento autobiográfico muito autocentrado, quero lembrar dos pormenores, das ruas, das comidas, dos sabores - mas, principalmente, das pessoas e das experiências.
Para contrabalancear o imprevisto, que foi culpa da minha desatenção com a Apple, recordo que as lembranças que importam mesmo, aquelas que não podem ser eternizadas em fotografias, estão em outro lugar. Os limites da imagem são óbvios: há detalhes que são gravados em palavras, em gestos, em atos.
As fotos de Machu Picchu, onde comemorei meu aniversário de 30 anos, não registraram minha amiga italiana, que conheci no dia anterior durante a trilha da van até o pueblo, fazendo piadas com o fato de os incas estarem de mau humor - porque estava nublado quando chegamos e não se via um palmo à frente. A câmera não registrou a reflexão amorosa dela sobre o episódio, dizendo que isso era apenas uma metáfora para a vida: o sol sempre sai, afinal. Pode demorar, mas ele brilha. Nenhuma foto captou, também, o quanto nos conectamos tão rapidamente. Antes dessa viagem, eu não acreditava em encontros de outra vida. Agora, sim.
Nenhuma foto do meu celular profere as coisas lindas que meu amor peruano me disse nos três dias que compartilhamos em Lima. Também não há registros dos meus olhos inchados - de tanto que chorei pela nossa despedida - saindo da casa dele rumo ao aeroporto, partindo para a próxima aventura. Eu espero nunca esquecer das palavras dele, porque, antes de conhecê-lo, eu nem sabia que um homem poderia ser tão articulado e sincero com os próprios sentimentos.
Não há foto que guarde o amor que recebi das crianças na ONG na qual voluntariei em Iquitos, na Amazônia peruana. As imagens não materializam as perguntas, o olhar curioso delas quando eu dizia que era brasileira, e certamente não guardaram os cheiros e os sons de Iquitos. Repasso as cenas na minha cabeça para filmar para sempre os cenários caóticos e fascinantes daquela cidade isolada no meio do bioma amazônico, para não esquecer nunca o vestido azul encharcado quando andamos de tuk-tuk durante um temporal, para não ir para os recônditos inacessíveis do cérebro os inúmeros curichis de aguaje que tomei com minha amiga mexicana e as cervejas geladas com aipim frito que me lembraram o Brasil, as saídas escutando funk com minhas irmãs peruanas e as vezes em que tocamos música brasileira na sala da casa para dançarmos todas juntas.
As fotos tampouco capturaram uma das cenas mais engraçadas da viagem: quando minha calça nova, recém comprada em Iquitos, rasgou durante uma festa latina, porque dancei tanto funk que ela não aguentou. Brincamos que não era uma calça à prova do rebolado brasileiro. Não existe registro da minha mãe iquiteña, à meia-noite de uma sexta-feira, lavando a camisa branca da minha amiga tcheca que eu usei para esconder o rasgo bem no meio da bunda e ir para casa sem exibir minha calcinha. Nunca vou esquecer dela rindo com o tamanho do rombo quando estendi a calça no varal de roupa.
Não tenho uma foto e um vídeo sequer dançando salsa no Peru com o Thomas, inglês viajante que mudou minha vida em 90 minutos. Ele tinha um celular tão antigo que sequer havia câmera. Ele não tem Instagram e possui WhatsApp só para falar com o irmão. Viaja há anos - e me pergunto: “onde estão as memórias dele? como ele faz para lembrar?”. (Apesar de não ter fotos com ele, quando eu o ver novamente, seja em que parte do mundo for, vou reconhecê-lo na hora.)
Perdi os registros da selva, dos três dias no meio da floresta amazônica. Mas a cerimônia de ayahuasca e seus aprendizados estão gravados dentro de mim, na minha alma, como se fossem tatuagem. E nunca vou esquecer que vi as borboletas mais lindas da minha vida lá, nem que, no momento em que pisei em terra firme, uma borboleta 88 pousou na minha perna esquerda.
Não tem foto que capture as sincronicidades a que fui exposta nesses cinco meses - mas tem muitos textos contando. Muitos.
Não tem foto possível para recordar a circularidade da minha vida em Cali, as novelas meio adolescentes, as falas dos tantos homens com quem compartilhei e que foram meios para curar partes minhas. Nunca vou esquecer as danças, as aulas de salsa, os bordões que eu e minhas amigas inventamos, o “buenos días, mi amor!” da minha melhor amiga colombiana, o “good mooorning, my frieeeeeeeend” da minha amiga taiwanesa. Que felicidade acordar todos os dias em Cali - e não tem foto para isso. Também não tenho mais fotos do meu primeiro tour na terceira maior cidade colombiana, mas a sensação de pertencimento, já naquele primeiro dia a percorrendo, ninguém nunca vai tirar de mim.
Não tenho registros do momento em que pedi, com todo meu coração, que aparecesse um homem para dançar salsa comigo durante uma aula coletiva gratuita - e aí, minutos depois, surgiu o meu primeiro caleño, estendendo a mão: “Quieres bailar?”. Não há registros das conversas profundas com minha melhor amiga colombiana, nem do almoço com minha amiga taiwanesa em que, pela primeira vez em anos - quiçá da minha vida -, eu notei que não estava com pressa para nada.
Não há imagem para recordar do momento em que pulei cantando Blank Space com a Joy pela principal praça de Cali, em uma sexta-feira à noite. Não há fotos que registrem as leituras equivocadas e as corretas que fizeram sobre mim em Cali. Não há foto que capture a mágica dessa cidade - mas essa mágica está, agora, mais que nunca, dentro de mim.
Sei que as coisas mais poéticas desses cinco meses não estão em fotos. Mesmo assim, hoje, 5 de dezembro de 2024, quando descobri esse buraco nas minhas memórias do rolo da câmera do novo celular, eu me permiti ficar em posição fetal por horas na cama do hostel, tão triste que sequer lágrimas caíam.
O que ressoa, depois de tudo o que ocorreu é: como eu lembro do que vivi? Em que parte de mim está gravada todas as salsas que dancei? Em que órgão interno registrei as pessoas com quem cruzei? Em que poro do meu rosto ficou gravado o tanto que sorri? Em que brilho do olho vai morar essa versão viajante? Como eu acesso o intangível, o irregistrável por imagens, o que não consigo sequer expressar em textos? Como garanto que essas memórias poderão ser acessadas daqui a 50 anos?
E entendi que essa newsletter e tudo que faço por meio da escrita é uma tentativa - vã, fugaz, incompleta, torta, mas muito honesta - de registrar pedaços, rastrear sentidos, atribuir significados. Pausar a Vida nos momentos mágicos. Recordar de quem sou, de quem somos, do que nos faz humanos. Sobretudo, de eternizar o que nos deixa para sempre com a sensação de que a trama do Universo é ordem, beleza, magia.
O engraçado é que algumas fotos aleatórias se salvaram. Dá para contar nos dedos. Entre as que restaram de Cali, estão uma árvore no meio da Carrera 6N. Fotografei ela porque a achei imponente e fiquei encantada com o tamanho das raízes: profundas, visíveis, fortes. (Cali, inclusive, está cheia de árvores assim.) Outra que restou é uma imagem de um livrinho minúsculo que meu amigo suíço comprou na Feira do Livro de Cali: pequenininho, cabe na palma da mão. “Son libros perfectos para mochileros”, ele disse à vendedora.
Os símbolos são tão óbvios que dá vontade de rir: permanece o que tem raízes firmes e o que não ocupa muito espaço.
Entendi: desfrutar com presença é a melhor forma de lembrar para sempre.
Porque é justamente aí que a lembrança entra na alma. Pode não ser acessível em memória fotográfica, mas é possível tocá-la por meio do corpo, de sensações, porque então aquele momento vivido é integrado dentro de você, e não em um objeto à parte.
Lembrete: checar as sincronizações da nuvem; levar chip extra; ter manhas para seguir viajando melhor e mais resiliência para levantar de imprevistos.
Lembrete 2: preciso mesmo dessa foto ou posso apenas desfrutar?
Lembrete 3: anotar o que pulsa no meu caderninho de bolso. Nunca falha.
Na minha última noite em Cali, quando ainda lidava com a dificuldade de acessar aplicativos de bancos sem o chip brasileiro e sofria pela resistência em aceitar o imprevisto, minha melhor amiga colombiana, Yinna - aquela que conheci no hostel em Cali - veio me visitar. Trouxe dois vinhos e fofocamos tanto que a língua doeu. A primeira foto no meu celular novo é ela dormindo bêbada no sofá do meu Airbnb.
“Soltar é amar”, me disse ela naquele dia, refletindo sobre nossa experiência na cidade. Temos que soltar o que achamos que é melhor para a gente. Aprendo. Solto porque amo a Vida. Porque segurar cansa. Porque fluir sempre me trouxe situações melhores do que imaginei serem possíveis. E porque mesmo lidar com os imprevistos de um celular roubado me ensina a viajar melhor e me lembra que há coisas que não vão tirar de mim nunca.
Ela falou: “Se você quer continuar viajando, joga a pergunta para o Universo. Ele funciona assim, por meio de perguntas.” A exemplo do que ela me ensinou, indago:
“Universo, quais experiências mágicas ainda estão reservadas para mim?”
E me abro, genuinamente curiosa. A viagem sempre tem que continuar. O que importa mesmo, de verdade, o que não pode jamais ser apagado nem perdido, isso eu carrego em mim: com raízes firmes, leve.
Gravei este áudio de forma livre, ontem, enquanto observava a chuva cair no meu hostel, em Pereira, na região cafeteira colombiana. Alguns amigos já tinham me pedido as reflexões da Artemísia em áudio. Está aí um teste :)
Até semana que vem!
Adorei ouvir o teu áudio! Também fui furtada uma vez, em Nápoles, e fiquei sem minhas fotos de Pompeia, Paestum e Atenas. Chorei muito. Fiz duas práticas de meditação e comecei a alterar a qualidade de meus pensamentos. Passou e superei. Felicidades na tua caminhada. Sigo te acompanhando. Um beijo. Rô Candeloro, de Porto Alegre💕
as memórias mais importantes ficam guardadas dentro de nós. vão-se as fotos, mas ficam os textos maravilhosos que você compartilhou conosco dessa jornada incrível. 😊