A retirada de mais um véu de Maya - Artemísia #46
Minha experiência com a ayahuasca na Amazônia peruana
A ayahuasca foi um chamado, assim como iniciar essa viagem pela América do Sul há quase cinco meses. Em sincronicidades, os acontecimentos foram se encaixando para que a experiência de tomar o líquido indígena sagrado se consumasse.
Ayahuasca é um termo em quéchua para descrever uma bebida oriunda da mistura entre a planta Banisteriopsis caapi e um arbusto denominado chacruna (Psychotria viridis), que contém dimetiltriptamina e produz efeitos alucinógenos. É um ritual sagrado ancestral que os indígenas descrevem “liberar a alma de seu confinamento corporal”. Acima de tudo, é uma medicina.
Os sinais, desde o primeiro dia no Peru, já se tornaram cristalinos: a planta queria abrir minha mediunidade. Ela seria esse portal, retirando mais um véu de Maya que encobre dimensões. Eu desconfiava disso antes mesmo de tomar o líquido escuro de gosto amargo em uma cerimônia xamânica na Amazônia peruana.
Mais de três meses depois do ato, as fichas ainda estão caindo - e só me sinto pronta para tentar narrar a imensidão da experiência agora. Se o faço, é como uma forma de me conectar às pessoas que preciso para seguir no caminho aberto pela planta.
No primeiro dia no Peru, tive uma conversa profunda com o meu anfitrião de Couchsurfing, um jornalista de meia-idade que me ofereceu hospedagem gratuita em Lima pela plataforma que eu tinha baixado no celular algumas semanas antes. Depois de virar uns shots de piscos artesanais, ele me confessou que tem mediunidade herdada da mãe e da avó, mas que sente muito medo de abrir a porta. “O que vou fazer com isso, com as informações que eu receber?”, me disse. Então permanece fechado ao canal. Sempre temos escolha.
Me sentindo confortável e entendendo a oportunidade única à minha frente, confessei a ele que sou uma bruxa e que, desde novembro do ano passado, minha tia, que faleceu quando eu tinha nove anos, se colocou à disposição para conversar comigo. Em um sonho, ela me enviou uma mensagem: “tô aqui do outro lado, você só precisa escrever um SMS”. Fazendo piada, ainda disse que estava em um lugar BBM: bom, bonito e maravilhoso.
Acordei naquele dia estupefata em um sofá de Airbnb em Copacabana. Quando o sonho é uma mensagem, nós sabemos. Contudo, decidi não abrir a porta. Lembro que, ainda no ambiente onírico, fiquei irritada porque não me sentia pronta, peguei meu celular, me dirigi à cozinha da casa da minha infância (cozinhas são ambientes alquímicos por excelência) e pensei: “não é possível que vou ter que abrir minha mediunidade”.
O ímpeto, ainda no sonho, foi contar à minha tia sobre meu momento de transição e incerteza profissional, pós-pedido de demissão de um emprego que me pagava bem e me oferecia a famigerada sensação de estabilidade e segurança que joguei para cima. Acordei resmungando e com raiva: por que ela quer falar comigo? Não dá pra me deixar quieta aqui no meu canto? Reneguei esse caminho.
Na minha primeira noite limenha, enquanto acariciava os dois gatos manhosos do meu anfitrião, o Jorge cravou a pista do que a ayahuasca faria comigo: “Quem sabe a ayahuasca seja esse canal para ti, para te oferecer respostas e te abrir a porta da mediunidade”.
Senti o coração pular, sabendo que ele tinha razão e que tudo se alinharia para que eu tomasse a bebida durante minha estadia no Peru.
Apesar da certeza, eu sentia bastante medo de como poderia ser minha experiência com a ayahuasca. Tinha receio de ter uma crise de pânico, passar mal, morrer - temores alimentados após uma viagem ruim com maconha há muitos anos. (Tive uma crise de ansiedade fortíssima em um restaurante porto-alegrense e, por 15 minutos, estava certa de que morreria.)
Para amenizar o medo e me sentir mais confiante, conversei sobre isso com quem cruzasse meu caminho e já tivesse provado ayahuasca - coisa da qual o Universo se encarregou de me oferecer aos borbotões. Ouvi todo tipo de relato, e o mais curioso e surpreendente foi que nenhum era igual ao outro. É impressionante como cada experiência com a planta é única, um Universo à parte.
Entendi que, para saber como seria para mim, eu teria que prová-la.
A chave veio com minha amiga mexicana, que se tornou uma irmã de alma. Ela já havia participado de seis cerimônias com a planta e me recomendou: “Se tu está com medo, conversa com a planta antes da cerimônia. Ela te escuta.”
Foi o que fiz. Era Lua Cheia, estava menstruada e pedi, de coração, que a ayahuasca me ajudasse a me tornar mais eu mesma e que a cerimônia fosse divertida. Em seguida, virei o copo que o xamã da etnia bora me alcançou.
Não me dei conta na hora, mas foram dois pedidos. Então, a cerimônia teve duas etapas.
As plantas alucinógenas são consideradas, milenarmente, “plantas dos deuses” pela comunicação que fornecem com o mundo espiritual. Elas retiram um véu de Maya, ou seja, desvelam ilusões que nos impedem de ver além do concreto. A ayahuasca é mais que uma planta: é descrita como uma medicina por excelência.
No livro “Planta de los dioses”, de Richard Evan Schultes e Albert Hofman, os autores postulam:
“[a ayahuasca] é mais que um instrumento do xamã. Penetra em tal grau em quase todos os aspectos da vida de quem a usa que dificilmente pode equiparar-se com outro alucinógeno. Os que a ingerem, xamãs ou não, veem a todos os deuses, os primeiros homens ou animais, e chegam a compreender sua ordem social.”
Minha amiga mexicana disse que a primeira experiência que teve com a planta foi muito difícil. Passou mal, demorou a soltar e saiu se sentindo pesada. De forma bem intuitiva, porém, a planta lhe tirou o medo que ela sentia de gatos. Noutras vezes, foi melhor. Em uma das últimas, ela começou a apreciar mais a própria companhia, porque disse que teve uma viagem super divertida: ela escorregava por tobogãs coloridos e sentia muito prazer em desfrutar a si mesma. Virou uma chave.
Outros amigos com quem conversei me relataram experiências de entenderem seu lugar no Universo, passarem a enxergar seus pais como seres humanos dotados de falhas e complexidades, encontrarem respostas a questões profundas.
Um fotógrafo limenho, amigo do meu anfitrião de Couchsurfing, relatou que tomar a ayahuasca foi como montar um quebra-cabeças: ele entendeu a vida inteira durante a cerimônia e passou os dias seguintes enxergando a natureza de forma viva. Ou seja, via a matéria das pedras, das árvores, dos pássaros. Saiu da Matrix. Depois disso, alavancou a carreira. Hoje, é um fotógrafo premiado que coleciona capas da National Geographic. Tornou-se mais ousado, isto é, fiel a si mesmo na Arte.
Outro peruano que viaja a América do Sul de moto me relatou que viu uma mulher selvagem. A imagem foi tão vívida que ele a desenhou e a tatuou nas costas, em uma das artes mais lindas que já vi eternizadas na pele de alguém.
Relatos convergentes são os de ver serpentes coloridas - o que é corroborado pela Literatura sobre a planta alucinógena. Algumas pessoas relatam que veem a serpente em frente de si, a sentem se enrolar em seus corpos e a abocanharem ao final. Há muito simbolismo sobre Vida-Morte-Vida nisso.
Eu vi muitas imagens psicodélicas, dignas de um videoclipe de Tame Impala. Pandas e mamushkas russas estavam entre o que apareceu à minha frente, mas só na segunda parte da cerimônia. A primeira foi intensa - e me abriu a porta que eu decidi que não estava pronta para atravessar. Ainda.
Quando senti a planta começar a fazer efeito, meu corpo se tornando absolutamente leve, a temperatura subindo e os batimentos cardíacos acelerando, duas coisas aconteceram:
1) Criei consciência de que teria que tornar minha cabeça um lugar seguro. Eu tinha que manter pensamentos limpos e positivos para conseguir soltar e deixar a medicina agir. “Está tudo bem, é uma planta e uma medicina ancestral, eu vou ficar bem, eu vou sair viva, estão cuidando de mim.”
2) Senti, nas minhas costas, minha tia - a do sonho - do meu lado esquerdo e minha avó paterna do meu lado direito. Estava protegida. Então soltei e começou a viagem.
Minha tia passou a primeira parte da cerimônia quase toda ao meu lado esquerdo. Não é que eu tenha sentido a presença dela. É diferente de sentir. Eu tenho absoluta certeza de que ela estava lá para me guiar à mediunidade, se eu tivesse me sentido pronta.
Minhas primeiras visões foram imagens similares a serpentes se enrolando em uma trama intricada que parecia desvelar uma Matrix. As cores oscilavam entre verde, vermelho, amarelo e azul. Era muito bonito ver isso enquanto o xamã entoava cânticos. O espaço em que realizamos a cerimônia estava escuro, chovia e só se escutava a voz do xamã e sapos coaxando sem parar.
De repente, essa imagem da serpente se desvaneceu e eu comecei a sentir meu terceiro olho arder muito. O terceiro olho é o chakra associado à clarividência, localizado entre os dois olhos. Ele ardeu muito, muito, muito. Foi uma dor inédita. Soube na hora que tinha começado a abertura da minha mediunidade, fiquei desesperada de medo e repeti cinco vezes, com muito fervor: “mediunidade não, mediunidade não, mediunidade não, mediunidade não, mediunidade não”.
Então parou. Sempre temos escolha - e a planta escuta.
Abri os olhos e só vi sombras e vultos à frente. Fechei novamente, tentando relaxar. Comecei a enxergar imagens psicodélicas - como um videoclipe do Tame Impala -, incluindo um rosto de panda. Me concentrei na música do xamã, esquadrinhei o significado do que tinha acabado de ocorrer, expliquei à planta que não estava preparada, senti ainda um pouco de medo de ver coisas que não queria.
Então fui me dando conta de novo do diálogo interno que eu mantinha durante a cerimônia. Ficou evidente a minha necessidade de controle, o meu desejo de atribuir significados a tudo, de entender o que me ocorre antes mesmo que tudo se desvele. Ou seja, o intento internalizado por anos de racionalizar antes de viver. De saber o que fazer antes mesmo que algo aconteça.
Aos poucos, porém, outra grande ficha caiu na minha cabeça - e essa não foi leve, foi uma pancada: preciso desfrutar isso aqui, porque também vai acabar. Então relaxei, me senti profundamente feliz, e aí, sim, a viagem começou a ficar divertida. Nessa parte, minha tia saiu do meu lado.
Em alguns momentos que, agora, acho engraçados, genuinamente me perguntava: “Isso realmente está acontecendo ou estou alucinando?”
Um indígena que trabalhava na reserva ecológica na qual me hospedei também tomou ayahuasca conosco. Ele estava tão relaxado e acostumado à planta que, durante a cerimônia, dormiu. Não satisfeito, roncava alto e caiu da cadeira em cima da minha colega de Nova Caledônia. Já sob o efeito da planta, pensei que estava alucinando, mas no dia seguinte descobri ser verdade, o que me fez rir muito.
A parte divertida da cerimônia tornou minha imaginação super criativa. O xamã entoava canções e eu via uma girafa de saia dançando. O fucinho de um cavalo virou o rato assistente de palco do Ratinho. As pessoas se desfaziam em tiras para se tornarem potes de maionese. Sentia que minha imaginação nunca tinha sido tão legal - e pensava: “uau, que fantástico estar na minha cabeça agora!”.
Desfrutei. Até que comecei a passar mal.
Vomitei seis vezes - o que os indígenas chamam de “purga”. Meu corpo foi completamente limpo. Não ficou nada dentro do estômago.
Desconfio do motivo. No Brasil, eu era vegana. Cheguei em Lima e já comi carne no primeiro dia, o que meu corpo aceitou com muita dificuldade. Desde a limpeza da ayahuasca, não consigo colocar carne na boca, e entendi que me evitar esse alimento é uma escolha da qual não posso mais me desviar.
Quando vomitei pela primeira vez, durante a cerimônia, lembro de pedir que meu receio de ficar sem dinheiro fosse junto, e que outros medos também fossem expelidos. Sinto que boa parte já me aliviou.
Há coisas muito óbvias que foram desveladas, mas é como se, sem aquele empurrão alucinógeno, eu continuasse presa na Matrix tridimensional concreta da vida.
No final da cerimônia, tive outra visão muito significativa: sempre em azul, verde e amarelo, imagens formavam uma espécie de jogo antigo de videogame. Fiquei entediada e pensei que poderia eu mesma criar uma visão melhor. Mas quando eu tentava controlar a imagem, ela se desfazia. Quando eu soltava, ela voltava a aparecer. Não gostava do que via, tentava controlar - e ela se desfazia.
Toma aqui a lição do que é a vida. Solta, querida...
A cerimônia durou aproximadamente duas horas. Quando voltei para o quarto, acompanhada pelo guia turístico que me levava pelo braço como um bebê - porque eu caminhava como uma bêbada -, continuei passando mal e sob o efeito da planta. Só melhorei no dia seguinte, quando o xamã preparou água com limão para mim.
Os dias seguintes, porém, foram bastante melancólicos, absorvendo todas as verdades que me caíram como uma bigorna.
A ayahuasca me deu uma certeza indubitável: eu vou chegar onde eu quero, porque eu recebo o que peço. Invariavelmente, eu recebo o que peço. Mas eu preciso soltar o controle da imagem que se forma à minha frente, porque ao tentar controlá-la ela se desfaz. Não sou eu que controlo, embora eu possa escolher o quê e como desejo me sentir ao longo do processo. E preciso viver com presença máxima cada momento, porque vou sentir saudade deles. É tudo efêmero. Essa verdade do tempo também me caiu muito pesada, alternando a forma como me movimento pela vida.
Não sei o que minha tia quer falar comigo. Imagino que seja importante. Ela está ali, do outro lado, me esperando cruzar a porta e permitir a abertura desse canal de comunicação. Eu sei que vou abri-lo, e sei a responsabilidade de digitar e publicar estas palavras. Mas já conversei comigo em meditações diversas vezes. Estou comprometida em atravessar a porta.
Não sei, também, o que fazer com isso. Talvez, seja para tirar um pouco mais o véu de Maya. Ajudar em uma evolução coletiva, transição, ou seja lá o que for. Sei que é parte da minha missão aqui.
Este texto é, também, um desejo de encontro com outras pessoas que possam me auxiliar a entrar nessa porta. Eu já a abri, meus sonhos recentes me mostram isso. Estou no pátio, em frente à soleira. Falta cruzar o limiar - o que me apavora porque é escuro.
Quando estamos abertos, recebemos o que pedimos. Agora, é preciso bancar.
Oi, Cândida! Adorei ler o teu relato. Estive no Peru em 2007. Na selva, em Tarapoto, um querido amigo gaúcho tratava seus pacientes dependentes químicos com a ayahuasca. Ele é psicólogo e o trabalho desenvolvido lá junto a um xamã era incrível! Tu vives em SP? Tenho outro amigo gaúcho que trabalha em um sítio em Mogi com a raiz. Queres o contato dele? Ele já está há anos coordenando atividades lá. Abraços! Namaste! Rô Candeloro, de Porto Alegre.
menina, quanto acontecimento, quanto aprendizado sobre si mesma, hein? eu sempre disse pras pessoas que trabalharam comigo: se tiver oportunidade, vai viajar. o crescimento que se tem viajando nenhuma outra coisa iguala. dale vida!