Dar nome às coisas - Artemísia #21
Palavras expandem ou contraem nossa realidade — tanto a nível individual quanto coletivo
Palavras têm poder. Elas criam realidades, explicam, circundam, enquadram, constroem, problematizam, esvaziam, ressignificam, ecoam, ressoam, vibram, doem, curam.
Com palavras, repetimos feitiços, contamos sonhos, relatamos acontecimentos, refletimos, iluminamos, obscurecemos, espalhamos coisas boas ou ruins. Cantamos mantras, damos significado, intencionamos desejos.
Nós usamos palavras o tempo inteiro, em um passo anterior ao pensamento como forma concreta e consciente.
Nossas palavras — geradas por meio de pensamentos que criam sentimentos e, no passo seguinte, ação ou inação — constroem nossa realidade.
Essa é a ordem: pensamento (palavras) — sentimento — ação.
Prestar atenção ao nosso diálogo interno é, portanto, o primeiro passo para trazer à consciência uma nova forma de estar no mundo, tanto individual quanto coletiva.
Em “A Trilogia de Nova York”, obra aclamada do estadunidense Paul Auster, o antagonista da primeira história é um sujeito bastante suspeito e contraditório chamado Stillman. Quinn — o protagonista — é contratado, por engano, para segui-lo, atuando como um detetive-escritor. É um roteiro intrincado e genial que parece impossível explicar em um parágrafo. Basta dizer que estou mergulhada nas páginas — e, por óbvio, adorando.
O que importa, neste texto, é afirmar que Stillman é um idoso com teorias coletivamente questionadas. Em uma conversa com o protagonista, Stillman explica que está em uma empreitada inédita que mudará o curso da humanidade. Para ele, tudo se despedaça porque não sabemos mais dar nome correto às coisas. Por isso, ele se engajou na criação de uma nova língua.
“Uma língua que irá, enfim, dizer aquilo que temos para dizer. Pois nossas palavras já não mais correspondem ao mundo. Quando as coisas formavam um todo, tínhamos confiança de que nossas palavras eram capazes de expressá-las. Mas aos poucos essas coisas se despedaçaram, se romperam, desmoronaram no caos. E no entanto nossas palavras permaneceram as mesmas. Elas não se adaptaram à nova realidade. Por isso, toda vez que tentamos falar o que vemos, falamos com falsidade, distorcendo a coisa mesma que desejamos representar. Tudo vira uma bagunça.”
Ele exemplifica por meio da utilidade de objetos, como um “guarda-chuva”. Quando está estragado e não desempenha mais sua função, não deveria ser denominado como “guarda-chuva estragado”, mas como outra coisa.
“E se não conseguimos sequer denominar um objeto trivial, cotidiano, que seguramos em nossa mão, como podemos pretender falar das coisas que nos dizem respeito mais a fundo? A menos que possamos começar a corporificar a noção de mudança nas palavras que usamos, continuaremos perdidos.”
Todos os dias, Stillman coleta objetos estragados, lascados, podres e estraçalhados pelas ruas de Nova York. Suas amostras chegam a centenas de itens.
- O que o senhor faz com essas coisas?
- Eu lhes dou nomes.
- Nomes?
- Invento palavras novas que corresponderão às coisas.
Mais para frente, em outro encontro com Quinn, Stillman cita o personagem Humpty Dumpty, de “Alice no País das Maravilhas”, e reforça seu fascínio pela capacidade criadora da linguagem.
“Em seu pequeno discurso para Alice, Humpty Dumpty resume o futuro das esperanças humanas e fornece a chave para nossa salvação: nos tornarmos senhores das palavras que falamos, fazer a língua corresponder às nossas necessidades.”
Criar um mundo diferente pressupõe uma linguagem diferente. E ela começa do lado de dentro.
Em tupi, não existe o “ser” enquanto conjugação verbal de “eu sou”. Só existe o “eu estou”. Somos definidos pelas circunstâncias, em um senso de coletividade característico de povos indígenas.
Em alemão, a palavra Weltschmerz exprime um diagnóstico preciso sem receita médica possível: “sofrer com as dores do mundo”. Não há antidepressivo, ansiolítico e Venvanse que afaste os sintomas quando somos rodeados de guerras e efeitos de sucessivas catástrofes climáticas. E penso: “catástrofe”, “crise”, “emergência” são palavras diferentes com pesos diferentes.
Em yanomami, wixia é o “sopro vital das florestas”. Há um vocabulário específico que dota a floresta de vida, que mostra como ela é guardada por espíritos xamânicos que mantêm seu equilíbrio e a protegem: os xapiri pë.
Dar nome às coisas é abrir possibilidades distintas de leitura do mundo, o que também define formas de habitá-lo.
No livro “Eat Pray Love” (que já citei umas três vezes por aqui), Elizabeth Gilbert conta sobre um retiro em que ficou vários dias sem falar. Nas páginas, ela afirma que os iogues acreditam que toda dor do mundo é causada por palavras, assim como toda a alegria.
"Criamos palavras para definir nossa experiência e essas palavras trazem emoções associadas que nos controlam como cães na coleira. Nos deixamos seduzir por nossos próprios mantras (sou um fracasso... estou sozinho... sou um fracasso... estou sozinho...) e nos tornamos monumentos a eles."
Se também estendermos essa leitura para o diálogo interno, pergunto: quando acordo, o que eu penso primeiro? Como eu falo comigo? O que eu digo para mim sobre o dia que se abre à minha frente? Que narrativa eu reforço sobre mim quando, aparentemente, tudo dá errado do lado de fora?
Esta semana, a grande ficha — aquela que orbita o espaço por anos e anos — caiu: tropeço e me enrosco em velhos emaranhados de palavras disfuncionais que reforçam narrativas que julguei ter reescrito à caneta.
Refaço o caminho: é preciso estar atenta, trazer à consciência, escolher outras palavras. Reescrevo e reescrevo e reescrevo com paciência, como uma criança ensaiando as letras no caderno de caligrafia, até não precisar mais dele.
Coletivamente, como temos imaginado, representado e pronunciado o mundo que desejamos viver? Qual é a etimologia do que escrevemos à caneta nessas páginas? Com que tinta imprimimos palavras e geramos sensações que nos impelem, ou não, à ação? Como escolhemos nos mover e regenerar? Que metáforas utilizamos na criação da realidade que desejamos viver?
Já escrevi um texto no LinkedIn há dois anos - sim, chegou a linkedizeira — falando sobre a necessidade de alterar metáforas relacionadas à guerra no ambiente de trabalho. Não quero batalhar, não quero competir, não quero destruir inimigos, atingir alvos, bater metas estratosféricas, performar em uma arena. Quero cooperar, construir, unir forças em prol de um bem maior do que o ego mesquinho de um mundo calcado no capitalismo e em uma energia masculina distorcida que adora metáforas bélicas. Propus leituras agroflorestais. Ainda acho válido.
Precisamos sonhar um coletivo melhor no diálogo interno. E necessitamos da expansão de aparatos linguísticos que ajudem a dar à luz ao que sonhamos viver. Não precisamos ir tão longe quanto Stillman, personagem de Paul Auster, mas podemos observar e, na sequência, intencionar com presença.
Palavras criam, destroem, regeneram, constroem pontes — ou as derrubam. Que a gente escolha usá-las com intenção e força e vontade e amor.
Hora do chá
Segunda-feira vai ter edição especial da Artemísia em comemoração a mais de duas dezenas de textos aqui nesta newsletter. Spoiler: tem a ver com dicas específicas voltadas à criatividade. Será a segunda edição oficial e independente do Hora do Chá para tomarmos acompanhadas de bolo e executarmos mais e mais cura alquímica do feminino.
A exemplo do texto desta edição, que palavras com significado profundo ou pitoresco vocês acham fascinante?
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Obrigada por me lerem! Até a próxima edição :)
Nunca li nada sobre agrofloresta e fiquei com vontade de saber qual você mais gosta/recomenda :)
"Dar nome às coisas é abrir possibilidades distintas de leitura do mundo, o que também define formas de habitá-lo" - exatamente! Adorei o texto.