O café da manhã de domingo - Artemísia #2
Meu maior desejo é o que me ancora em uma travessia enluarada - mas, peraí, eu sei o que quero de verdade?
O Retorno de Saturno é real. Fichas não caem aos poucos, mas aos montes. Escapam do bolso tilintando igual a uma moeda quando tocam o chão ou escorrem como água pelas mãos (antes tão cheias de certezas). Como mágica de circo, saem de lugares inesperados: pelas orelhas, narinas, fios de cabelo. Posso jurar que a palhaça que às vezes sou tira umas fichas até das axilas, arrancando gargalhadas histéricas da plateia. Caminho desajeitada, mas é apenas um cuidado extra. Isso porque, quando vejo, dou um passo distraído e pá: outra ficha escapou, nem tinha notado, que coisa.
Essa transição que começou aos 28 anos e sua chegada lenta aos 30, que completo no dia 15 de julho deste ano, tem sido dolorosa e incrível—com o pêndulo oscilando entre os dois polos com um pouco mais de força do que gostaria. Já escrevo sobre isso há um tempo em textos disponíveis no Medium. Deparo-me com negativas que viram um “sim” enorme para mim. Separo o ego da alma. Arrisco uma aventura amorosa, aprendo a andar de skate, mergulho na simbologia junguiana, fico mais intolerante a ambientes que não respeitam minha individualidade, peço demissão, viajo, pulo de asa delta. Choro, rio, corro, escrevo, experimento a vida, crio uma newsletter (ora, vejam só). Escapolem as fichas nesse movimento. E eu caio de bunda e de joelhos, colecionando hematomas.
A pergunta que mais me faço, desde que essas transformações vertiginosas têm ocorrido, é: o que eu quero de verdade?
Separo com paciência oscilante, como se estivesse escolhendo os feijões doados pelo vizinho, o que são intromissões que vieram de fora e o que minha alma de fato indica como o caminho. E digo paciência oscilante porque, com raiva, às vezes jogo os grãos longe nessa empreitada de formiguinha que torra meu saco—só para depois perceber que preciso recolhê-los novamente e seguir no processo. Esse aqui é bom, posso comer; este não, volta para a terra para virar adubo.
Em novembro do ano passado, tive um sonho muito significativo sobre isso. Recém saída de um emprego aparentemente estável (porque nada é estável, não é mesmo?), sonhei que um homem muito simpático me perguntava: “O que tu quer comer no café da manhã de domingo?”. Eu estava em um espaço de transição similar a uma rodoviária, cheia de malas em volta e com medo de esquecer uma delas. Respondi, hesitante, que perguntaria às gurias, porque o que elas quisessem comer estava bom.
Acordei com um estalo: eu sei o que desejo no cardápio do café da manhã mais nobre da semana. Só que tenho medo de pedir. Afinal, será mesmo possível realizar tudo que minha alma deseja? Não vou desapontar a professora da primeira série, que esperava tanto de mim? E meus colegas, que sempre disseram que eu era a melhor da turma? Olha aí onde ela está hoje. Quase 30 e perdida… tsc, tsc, tsc.
Entendi a outra parte do sonho também: tenho que escolher melhor a bagagem na transição. Não dá para se movimentar com leveza carregando um monte de roupa que nem combina mais comigo.
A verdade é que perdida eu não estou. Nunca estive tão encontrada, digamos; tão consciente, tão disposta, com tanta energia e força de ação. Por incrível que pareça, caírem fichas deixa tudo mais leve. O bolso não fica abarrotado de quinquilharia, as mãos dançam mais livres e tocam outras coisas, e respiro aliviada quando mais uma ficha tilinta aos meus pés. Soltar é ruim mas é bom. O velho paradoxo de estar viva.
Para atravessar as turbulências, tenho me ocupado bastante com uma empreitada que desejei iniciar há uns anos, mas que me encontrou na hora certa: a releitura de Harry Potter. A saga me fez amar ainda mais a Literatura e o poder da contação de histórias na adolescência—e não sei se consigo abarcar em palavras a imensidão de reler aquelas sete obras. São potentes, literalmente mágicas. (Sim, a J. K. Rowling vacilou muito, há falas transfóbicas imperdoáveis e não esqueci disso.)
J. K. Rowling sabia muito bem o que estava escrevendo. Harry Potter é uma saga rica de informações, nas entrelinhas, sobre o funcionamento do Inconsciente. Magia, para mim, é isso: desvelar camadas do funcionamento do Universo. É tornar-se consciente. (No entanto, deixemos esse aprofundamento para outro texto.)
Em Harry Potter e A Pedra Filosofal, a primeira obra da série, o bruxinho encontra um espelho em uma sala da escola. Ao mirar-se, contudo, ele não vê seu reflexo, mas enxerga, pela primeira vez, toda sua família. Seus pais foram mortos por Lord Voldemort, o vilão da saga, enquanto Harry ainda era um bebê. Foi a primeira vez que ele enxergou o pai e a mãe juntos. É que ele se refletiu em um espelho mágico.
Em uma passagem posterior da obra, o diretor de Hogwarts, Alvo Dumbledore, explica a Harry o funcionamento do objeto. O chamado Espelho de Ojesed mostra o desejo mais íntimo, mais desesperado que a pessoa que se mira nutre em seu coração. Segundo ele, a pessoa mais feliz do mundo veria apenas seu reflexo normalmente. Outras se surpreenderiam com a imagem; afinal, o que você realmente deseja e nem sequer sabe?
“[...] o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível [...] Peço que não volte a procurá-lo. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver.”
O que eu veria no Espelho de Ojesed? Me pergunto isso desde que li aquele trecho, bem no período em que embarquei a Dubai para participar da COP28 —a maior conferência do mundo sobre mudanças climáticas —, em uma viagem em si mesma doida e nutrida com afinco pelo meu coração.
Caírem fichas é quase como desembaçar o espelho. Estou começando a enxergar.
Na semana passada, tive a alegre ideia de assistir ao filme Wish - O Poder dos Desejos no cinema, nova animação da Disney em comemoração aos 100 anos do estúdio. Resumidamente, o roteiro é centrado em Asha, uma jovem que mora no reino mágico de Rosas e que, um dia, faz um desejo tão puro que é atendido por uma entidade de poder ilimitada: uma Estrela.
Ela queria enfrentar o Rei Magnífico de Rosas, que prende o desejo das pessoas em bolhas e só realiza um deles por ano. As pessoas, quando entregam seu desejo ao governante, em uma cerimônia pública aos 18 anos, os esquecem. Ficam, portanto, reféns daquela autoridade interna negativa, que parece ser boa e querer o bem delas —mas é apenas sedenta por poder.
A história é muito, muito bonita, cheia de símbolos e de representações do funcionamento da psique. No final, o que fica é a mensagem de que os nossos desejos mais profundos, mais puros, aqueles feitos com o coração, nos permitem atribuir um significado à vida.
Compartilho a música que mais me emocionou no filme, que é a mensagem mais bonita que já vi sobre termos todos a mesma origem e podermos… brilhar.
Neste momento de transição interna, em uma travessia noturna, é essa busca pelo meu verdadeiro norte, o mais puro, que me guia. Ter um desejo ancora, dá força, não permite que fiquemos loucos - ao contrário de pessoas que não paravam de se mirar no Espelho de Ojesed e contemplavam uma imagem que nem sequer pensaram ser possível virar realidade. Confio que posso realizar todos os desejos do meu coração. Tive provas grandes disso ano passado. Provas irrefutáveis, eu diria.
Assim que o desejo estiver claro, é importante não entregá-lo a autoridades internas corruptas. O trabalho de remover os véus de medo e ilusão para realizá-lo precisa ser feito por nós mesmos, em conjunto com pessoas que se unem ao mesmo propósito. Trabalho interno reflete no externo - em todos os níveis.
O Retorno de Saturno tem sacudido estruturas, mas cada ilusão que desvelo é mais um passo rumo ao encontro com minha alma, silenciando as vozes externas, a poluição sonora, o caos, as expectativas que não são minhas.
Portanto, escolho o cardápio de domingo com cuidado, sem perguntar a ninguém, pensando não só no gosto das coisas, mas em como quero me sentir provando elas. É a minha refeição, é com o que vou me nutrir. Há algo que ficou claro para mim também nos últimos tempos: quando eu for servida com o que pedir, quero degustar a refeição com presença, sentir o sabor de cada coisa, aproveitar a fartura.
Se algumas cabeças sacudirem em tom de desaprovação com as escolhas, talvez eu esteja no caminho certo. A bússola precisa apontar para quem interessa na decisão final: para mim.
Hora do chá ✨
Tenho lido muito nessas primeiras semanas de janeiro. Acabei de finalizar o terceiro livro do ano, O Mundo se Despedaça, de Chinua Achebe. Lindo e forte, é considerado a principal obra da literatura nigeriana. Como foi escrita originalmente em inglês, foi lida no mundo todo—sendo, pela primeira vez, uma obra que apresentava a história da colonização pelo ponto de vista africano.
Não gostei do livro Sonho Manifesto, do Sidarta Ribeiro. Pedante, enumera muitas referências sem costura adequada e repete muita coisa óbvia. Fiquei decepcionada, pois O Oráculo da Noite é muito bom.
Não paro de escutar o último álbum de Ana Frango Elétrico, Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua. Não deem bobeira, vale muito. Foi um reencontro nostálgico, pois em 2019 e 2020 ouvi, em looping, o também ótimo Little Electric Chicken Heart.
Assisti, na sexta-feira passada, ao show Alfabeto Sonoro, de Letícia Novaes (Letrux) e Thiago Vivas, em Porto Alegre. Quem tiver oportunidade em outro local do Brasil (ou do mundo): vá! Letrux é um acontecimento—e ali ela cantou Vinicius de Moraes, Yoko Ono, Grupo Raça, Maria Bethânia, além de intercalar com declamações de poemas (com interpretação, porque ela é incrível!). Teve Hilda Hilst, Wislawa Szymborksa, Roland Barthes, Fernanda Young, Xênia Antunes e Gonçalo M. Tavares, entre outros.
Por último, mas não menos importante no cardápio cultural para segurar os forninhos da ansiedade: exercício físico. Todos os dias estou me movimentando, alternando corrida com musculação e funcional. Em breve, devo escrever um texto somente sobre essa virada de chave imensa que veio ano passado (antes tarde do que mais tarde, não é?).
Do que vocês têm se alimentado nestas primeiras semanas de janeiro?
Vejo vocês de novo na semana que vem :)