Solastalgia e esperança possível - Artemísia #17
Em meio a obras, chuvas torrenciais e aflição, um lembrete
Tento escalar um muro com amigos de infância em um sonho. Estamos em um labirinto, chegando a um local sagrado que se assemelha a Machu Picchu. Meus amigos sobem rapidamente pelo muro de pedras (e, no ambiente onírico, essas pedras são entremeadas por caixas de papelão molengas). Eu, com meu ego sacolejante, meu medo de altura, muito receio de pisar em falso e pouca elasticidade, travo. Parece impossível chegar ao outro lado.
Atraso o grupo e, como uma criança birrenta, começo a chorar, me culpando e me sentindo impotente. Uma grande amiga me pega pela mão para me ajudar a vencer o obstáculo final, faz piada com a situação e, segundos depois, estou do outro lado, rindo junto.
Dentre muitos aspectos inconscientes relacionados a uma travessia, o sonho me lembra que nunca chegamos ao outro lado sozinhos.
Escrevo esta edição da newsletter enroscada em cobertas no meu quarto em Porto Alegre, no sul do Brasil, com uma grande consciência do meu privilégio. O Rio Grande do Sul é assolado, novamente, por uma enchente histórica — e ouço a chuva forte e os trovões batendo na minha janela. Leio notícias, assisto vídeos e converso com amigos e amigas que estão sendo atingidos pela enchente na cidade em que cresci e nos arredores. Sinto muita impotência e tristeza.
No município de São Sebastião do Caí, o rio tem previsão de subir acima dos 17 metros — já foram 16,67 na madrugada de quarta-feira. A maior enchente da história da cidade, em novembro do ano passado, atingiu o marco de 16 metros. A família do meu melhor amigo perdeu tudo daquela vez e ainda não se sabe o tamanho do estrago da enchente atual. Há imagens de uma forte correnteza na escola em que estudei no Ensino Médio. A água nunca havia chegado lá, na principal avenida da cidade de 25 mil habitantes. Não há mais área de risco em São Sebastião do Caí. Toda a cidade será atingida e, em alguma medida, modificada. Assim como em outras regiões do Rio Grande do Sul, a água avança por bairros em que nunca chegava. Penso: “se agora os ricos também são afetados, será que alguma coisa será feita?”
Estou desolada, cavando fundo para reencontrar a esperança, mas a chuva não dá trégua e dissolve qualquer possibilidade de solidez.
Há uma palavra que descreve a sensação de violação do nosso lugar no mundo causado por mudanças ambientais: solastalgia. O termo é um neologismo cunhado pelo filósofo Glenn Albrecht quando trabalhava no departamento de Estudos Ambientais da Universidade de Newcastle, na Austrália. É uma junção de "solace", que em inglês significa consolo, e a palavra "nostalgia”.
Dar-se conta de que nosso lugar no mundo foi — e continuará sendo — completamente modificado é doloroso. Não que tenha havido possibilidade de permanência, uma vez que a mudança é a regra da vida. Mas, hoje, o que ocorre é uma destruição brutal por consequências climáticas, oriundas da ação humana.
Nada será como foi, mas o futuro parece assustador demais para digerir de vez.
Estou em função de uma obra na minha cozinha esta semana, que impossibilita o uso desse espaço e da minha sala. Meus movimentos estão limitados ao banheiro e a um quarto completamente abarrotado de sacolas com talheres, comida, potes, pratos e panelas. Passo café na cômoda da cabeceira e sobrevivo de comida congelada e delivery.
As obras exigem uma organização interna afiada, porque reforça que preciso tirar forças de outro lugar que não uma rotina impecável para manter a disciplina. Elas me mostram, ainda, o que eu desejo ou não negociar independente de não cumprir a rotina da forma como eu tinha estabelecido.
Estou sem minha escrivaninha de trabalho, sem minha mesa de escrita e sentindo que a reforma vai além de um aspecto concreto. Ela é grande, é necessária, e eu a adiei por anos com receio justamente da bagunça, da poeira que entra em tudo, do barulho que atravessa as reuniões online, da newsletter que precisa ser redigida em uma posição desconfortável na cama.
Minha mãe tentou amenizar meu desconforto, lembrando que é temporário: “não se faz omeletes sem quebrar ovos, Cândida”. Respondi que por isso mesmo sou vegana. Sei que também não se faz uma floresta frondosa sem podar galhos e sem conhecer o solo e sem replantar umas espécies de vez em quando e sem arrancar coisas desnecessárias.
Qualquer obra exige bagunça momentânea e tolerância à sujeira. Talvez tenha ficado evidente, a essa altura, que não me refiro somente a obras físicas, mas da própria evolução em busca de autoconhecimento. Tudo parte da escolha e da coragem para sustentar o caminho. Focar no processo é incômodo, mas não dá para pular etapas.
Andei com um motorista de Uber na quarta-feira de manhã que é apaixonado por cachorros e gatos. Ele gosta, especialmente, das duas espécies juntas, no mesmo ambiente. Tem felinos e cães em casa e jura que todos convivem bem.
Compartilhei minha angústia com a situação climática ao longo da corrida, e ele respondeu: “Tenho uma teoria. Se a Terra é um organismo vivo, os seres humanos são um câncer. Esses eventos extremos são os anticorpos dela se defendendo.”
A falta de convivência harmoniosa entre espécies distintas gera as consequências que temos vivido.
Teorizo sobre tudo. A cabeça de quem pensa muitos pensamentos quase sai fumaça. E nessa jornada de aprendizado, busca de conhecimento e espiritualidade, já me deparei com correntes um tanto duvidosas. Sim, eu também concordo que tudo tem um motivo maior, sei lá qual. Muitas vezes, compreendemos somente anos ou décadas depois. Também acredito que tudo pode nos ensinar algo, que a dor em si mesma carrega lições, se quisermos olhar para elas com atenção. Mas não vou cuidar só de mim, ainda mais em momentos tão delicados.
Espiritualidade que confunde autodesenvolvimento com individualismo é aprimoramento do ego, não do self. Espiritualidade sem compaixão e empatia pelos outros é ilusão. Somos afetados pelo nosso entorno — e vice-versa. Por isso, enquanto existir dor e sofrimento em um lugarzinho do mundo, por mais remoto que seja, vai haver dor e sofrimento em toda parte.
A esperança possível é a união, a compaixão e um senso de coletividade que pensa em longo prazo. O autodesenvolvimento e a reforma no seu espacinho interno não eximem a responsabilidade coletiva com o outro. Todos moramos, no fim das contas, sob o mesmo teto.
Não vamos atravessar o maior desafio da história sozinhos, e não custa estender a mão para ajudar outra pessoa a chegar ao outro lado.
Hora do chá
Comecei a segunda-feira honrada de abrir a newsletter Travessias e dar de cara com um texto da Bruna Próspero citando a Artemísia (especificamente, a edição 14). A Bru compartilha sobre criatividade nos textos dela, sempre impecáveis, e falou sobre escrever como quem manda cartas de amor e sobre agradecer a rede que mantém nossa criatividade de pé. (Sou fã da Travessias e, inclusive, a newsletter está aqui nas recomendações a novos assinantes.)
Um trecho do texto da Bru: “Vida criativa não é só sobre escrever, pintar e fazer arte. Vida criativa é sair do piloto automático. Viver do jeito que deseja. Largar a profissão para se lançar em algo que a sua alma chama. Transformar a morada. Implementar um método novo dentro do antigo trabalho...É enxergar para além do que os olhos veem.” Me identifiquei muito! Ok, agora leiam ele todo aqui.
A propósito, a Bru colidera um grupo de escrita criativa chamado Escritas Regenerativas. A proposta é “cultivar uma escrita agroflorestal, livre da monocultura das fórmulas prontas que agem como veneno para a terra da criatividade”. Nem preciso dizer que me ganhou na hora e que já estou inscrita para a próxima jornada. Nos vemos lá?
Estou muito feliz com as interações que esta news proporciona, pessoal. Que ela sirva como um pontinho de luz, inspiração e esperança a alguém no meio de tanta dissolução me deixa emocionada. Obrigada pela leitura e até semana que vem! :)
Já me declarei fã dessa newsletter?
Tenha certeza de que ela serve para isso e muito mais! ♡