Ainda não acabou - Artemísia #24
As fases do luto coletivo e um estado inteiro em dissolução
Fui buscar meu carro ontem na oficina. É um local de confiança em Porto Alegre, localizado no Quarto Distrito, região muito afetada pelas enchentes na capital gaúcha. Sempre sou bem atendida por uma mulher, o que também me inclina a levar o automóvel para ser revisado por lá. Ontem, descobri que ela tem 63 anos e é uma das donas do espaço.
Me entregando o carro, ela contou que perdeu tudo na cidade de Canoas, que a oficina contabilizou prejuízo com mais de 20 veículos submersos, ficou com os olhos marejados e se desculpou porque está emotiva nos últimos dias:
“Tenho 63 anos, trabalho há 50. Fico pensando que não vou ter mais 50 anos de trabalho para recuperar tudo.”
Para disfarçar a tristeza e mudar de assunto, ela abriu a porta do automóvel, sorrindo: “Ele está bem cheirosinho.”
Segunda-feira passada, dei carona ao meu melhor amigo, jornalista que cobre as enchentes para um veículo de comunicação de abrangência nacional. A família dele mora em Harmonia, mesma cidade da minha. Eles perderam tudo. Acharam alguns móveis e objetos a uns 100 metros das duas casas que ficam na beira de uma rodovia. Havia cadeiras, bancos e eletrodomésticos presos entre galhos de árvores. Ele cobre o evento climático mais extremo do Rio Grande do Sul enquanto lida com o luto pessoal. Isso, por si só, já me deixa chocada.
A avó dele, de 80 anos, está arrasada. Eu a adoro — é uma dessas senhoras muito “pra frente”: dirige sozinha, é simpática, tem olhos azuis doces e atentos, mistura português com o dialeto alemão. Em uma breve conversa comigo, ela ficou com olhos marejados contando o que ocorreu e disse, quando viu a filha (mãe do meu amigo, de 60 anos) limpando, com lava-jato, uma almofada enlameada em uma segunda-feira pela manhã:
“Nessa idade ainda tenho que passar por isso.”
Especificamente nessa região do Rio Grande do Sul, as pessoas estão “acostumadas” (muitas aspas aqui) com as enchentes. Na divisa entre Harmonia e São Sebastião do Caí, onde eles moram, o rio Caí sobe com certa frequência, mas nunca nas medidas e na intensidade com que transbordou dessa vez.
Esta semana, eles tiveram que levantar os móveis que restaram de novo. Foi a terceira enchente do ano, a quarta em um período de oito meses.
A avó do meu amigo está triste (com razão) pelas perdas materiais, mas sobretudo vive um luto subjetivo: a alteração permanente e irreversível de um espaço físico de referência de uma vida toda e a dissolução de bens materiais que contam uma história pessoal.
Outro amigo meu, de 29 anos, perdeu tudo na cidade de Eldorado do Sul, que foi o município mais afetado do estado. A cerca de 30 km de Porto Alegre, essa cidade teve 80,8% dos domicílios foram atingidos pela água. Ele narrou a história de quando saiu de casa e depois de quando voltou para (tentar) recuperar algumas coisas — e eu me recuso a acreditar que aquela narrativa não seja ficção científica. Ele está vivo porque se salvou com a prancha de surf.
A diarista do meu prédio perdeu tudo no município de Alvorada, que faz divisa com Porto Alegre. Ela me contou entre risos, porque era inacreditável, a história de quando teve de sair de casa e foi migrando de vizinho em vizinho, até eles perceberem que a enchente seria maior do que pensaram e que teriam — todos eles, inclusive os vizinhos — que sair do bairro.
Não há — simplesmente não há — o que dizer. Eu não sei consolar pessoas nessa situação, porque não tem como. As palavras tecem coisas ridículas perto do que escutamos. Talvez, o que me resta é auxiliar financeiramente, doando o que não preciso ou oferecendo dois ouvidos atentos.
Os protestos, o trabalho diário com meio ambiente e a reconexão com a natureza, nessas horas, parece que se dilui no mais urgente. Por alguns momentos, até questiono o quanto importam. Mas não vamos esquecê-los. São paraquedas coloridos.
Saio às ruas de Porto Alegre para correr e alguns locais ainda estampam a marca da enchente na parede. Os entulhos na calçada carregam histórias, objetos, brinquedos, roupas, móveis irreconhecíveis que só são pedaços de madeira.
Não importa para onde eu olhe ou com quem eu converse, fica evidente: ainda não acabou. Talvez, mal tenha começado.
Escrevo estas palavras em meio a uma tempestade em Porto Alegre e a mais uma enchente na minha região, o Vale do Caí. Um estado inteiro não tem mais paz quando ouve barulho de chuva.
Havia planejado outro texto para esta edição — e passei a semana escrevendo ele na minha cabeça, mirando sombras, escavando aquelas linhas. Faz mais de um mês que eu tento fingir normalidade externa, porque assim penso que consigo permanecer forte para ajudar. Mas tudo se esvaiu com esse turbilhão do luto, que vem e volta e vem e volta e vem e volta. Travei.
Entendi que acolher o que precisa e quer sair é parte de uma vida criativa e autêntica, o que é justamente o motivo de existência desta newsletter. Não ouso comparar minha dor com a de quem perdeu coisas, pessoas, animais na enchente. Só não dá para ficar imune olhando em volta.
O luto das pessoas perderem tudo não é de natureza material, mas é emocional, afetivo.
A avó do meu amigo não se conforma pela perda de uma air fryer nova que ela adquiriu ano passado. Não é como se fosse impossível comprá-la de novo — mas aquela, especificamente aquela, ela tinha comprado com o próprio dinheiro. Ela não se importa com o mixer que também foi arrastado pela correnteza. Aquele mixer tinha sido um presente. Mas a air fryer era dela, fruto do esforço dela, do desejo consumado dela. Era uma conquista.
A dona da oficina não se ressente porque perdeu objetos e móveis de luxo — ela mesma me disse que não tinha muita coisa, mas tudo estava “ajeitadinho, do meu jeito”. Podem doá-la tudo igual ou até melhor — não vai ser a mesma coisa. Era uma história, eram memórias. Como repor isso?
(Um dos melhores textos que li sobre o tema, inclusive, foi escrito pela Julia Dantas, que teve a casa atingida em Porto Alegre. Caso você ainda não tenha lido, deixo o link aqui.)
O luto desloca tudo, arranca certezas. É preciso reimaginar a vida, o futuro, a história. Agora, no Rio Grande do Sul, o processo ocorre de forma coletiva, em uma escala muito grande. Diluídos entre a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação (em uma espiral contínua e oscilante), milhões de pessoas estão reimaginando o passado e o futuro.
O que me surpreende é notar como ainda há tanta ternura no meio da dor. Acho que é isso que me dá vontade de chorar.
Continue doando!
O Espaço Marlon e Marcelinho, localizado no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, lidera o auxílio a comunidades vulnerabilizadas da zona norte da capital. Conheço o projeto e admiro muito. Doem pela chave PIX: espacomarlonemarcelinho@gmail.com.
A Frente Quilombola arrecada doações destinadas a comunidades quilombolas de Porto Alegre. Chave PIX é 51981259914 e cai para Tânia, que é liderança do Quilombo Kédi.
A Articulação dos Povos Indígenas lançou uma campanha para auxiliar as comunidades afetadas em todo o estado. Mais informações aqui. Chave PIX: 566601e8-72b1-4258-a354-aa9a510445d1.
As Cozinhas Solidárias do MST já prepararam mais de 80 mil refeições para pessoas em situação de vulnerabilidade devido às enchentes. É um trabalho lindo do qual sou fã — e isso considerando que os maiores produtores de arroz orgânico da América Latina, que são do movimento, perderam toda a produção em Eldorado do Sul. Para ajudar, doe pela chave PIX 09352141000148 (no nome do Instituto Brasileiro de Solidariedade) ou pelo Apoia-se.
O projeto Meu Lar de Volta conecta pessoas que precisam de ajuda a quem deseja ser voluntário na limpeza de casas. Agora, eles têm promovido mutirões de limpeza em bairros específicos. Conheçam aqui.
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Sobre a importância do amor e os perigos da raiva: Tudo o que não é amor é ilusão - Artemísia #19.
Lendo seu texto, revivi meus dias de luto em Petrópolis, quando a cidade foi devastada pela chuva de 2022. É algo muito triste, e só quem vive no lugar pra saber como é. Seus ouvidos atentos com certeza são ótimas ajudas nesse momento. Força. 💙
o mais triste é que ainda parece estar longe de uma "normalização", se é que isso vai ser possível.