Tudo o que não é amor é ilusão - Artemísia #19
O que seria um texto sobre raiva virou uma newsletter sobre amor
Estava decidida a sentar em frente à tela do computador e escrever um texto sobre os usos da raiva. Eu tinha em mente tecer uma ode duvidosa à energia criadora que a raiva emana, por meio daquela descarga de adrenalina que nos impele à ação e que todos já sentimos: as mãos esquentam e cerram, o peito bufa e a gente não prende mais o grito na garganta. O sapo pula para fora desajeitado, o dedo aponta em riste, a voz ecoa com segurança e alguns decibéis acima do costume. É o termômetro mais acurado e visível de que um limite foi ultrapassado, que não aceitamos o status quo, que estamos prontos a ir ao fim do mundo a pé para expressar aquela necessidade e ter nosso desejo atendido.
O texto estava mentalmente arquitetado, com referências e exemplos que comprovavam a minha teoria. Até que, refazendo contas, percebi que a raiva sempre me empurrou para o outro extremo da balança — para uma ponta oposta que, em si mesma, também é perigosa. Eu pendia, temerosa, na beiradinha de outro precipício, e me arrastava de volta ao centro com dificuldade, pernas trêmulas e arrependimento. Quase sempre ficava doente, para completar o combo da energia que atingiu o pico e precisou encontrar forças para retornar ao equilíbrio.
Depois de uma semana e meia não sentindo mais que tristeza profunda e torpor anestésico, compreendi que tudo o que eu queria era me encher, de novo, de força de ação. Queria ter energia para criar alguma coisa que não parecesse apenas um paliativo, executar ideias mais brilhantes do que “só” me voluntariar em um abrigo perto de casa separando roupas. Eu queria, de verdade, ajudar mais as pessoas, queria recuperar a energia de uma ativista climática que parece ter as respostas, que aponta as causas e oferece soluções.
Mas eu estava inerte, torpe, triste e desorientada, ouvindo helicópteros o tempo inteiro sobrevoando Porto Alegre, checando a cada minuto se meus amigos estavam bem ou se teriam que evacuar prédios, compartilhando vaquinhas de amigos do interior gaúcho que perderam tudo com a força das águas, tentando encontrar o melhor horário para comprar água mineral no mercado e fazendo um esforço descomunal para não chorar em meio a tarefas que pagam boletos.
Pensei que a raiva precisava se sobrepor ao espanto que — ainda — parece contínuo, interminável, infinito. Mas não era raiva que faltava. Por uns dias, eu me perdi de mim, e não consegui ser compassiva e paciente com meu processo.
É desafiador conceituar algo tão simples e tão complexo quanto o amor, a pecinha que ficou turva momentaneamente em meio a tanto medo e ansiedade. Mais desafiador ainda escrever sobre o tema sem recair em clichês, breguices, melosidades mais intensas do que declarações cancerianas.
Mas como definir a ação que parte do amor sem dizer que é a manifestação pura da essência de tudo o que é?
Na obra “A Return to Love”, Marianne Williamson escreve:
“Tudo o que não é amor é ilusão”.
Vou repetir: tudo o que não é amor é ilusão.
O amor é simplesmente isso: tudo o que é.
“A Return To Love” é um livro danado. Te engolfa e te transforma em uma leitura fluida. Williamson diz que, quando alguém se comporta de forma não amorosa conosco — ou seja, quando grita, mente ou rouba, por exemplo —, a pessoa apenas perdeu contato com sua essência e age por medo. E reflito: quão doente é nosso sistema a ponto de produzir pessoas assim em massa? O amor é, em tempos avessos, uma rebeldia profunda.
Ela vai além e diz que, por meio da raiva, não construímos paz — somente mais divisão, mais afastamento. Penso que, como ativista e comunicadora socioambiental, não quer dizer que não devamos agir. Muito pelo contrário! O amor é energia em ação. Mas pode a nossa ação partir de um inconformismo oriundo do amor pela natureza, pelos seres vivos, pelo que é? Pode nossa ação assumir uma postura não assentada somente na areia movediça do medo, mas ir para além dele — e se ancorar em otimismo, esperança, vontade e… amor?
Assim, mudamos a chave da própria jornada, que em vez de ser baseada somente em dedos em riste raivosos que buscam a próxima pessoa para brigar e discutir, pode de fato construir pontes e soluções assertivas.
Williamson resume: “O amor dá direção e energia. É um combustível espiritual”.
Não era raiva que me faltava. Era conexão comigo mesma.
É compreensível que assistir centenas de milhares de pessoas deixando suas casas e centenas perdendo a própria vida nos estremeça com mais força do que o usual. É compreensível se sentir desnorteada, triste, anestesiada. É compreensível sentir raiva. É compreensível a ansiedade diante de um futuro que parece tão movediço, instável, solúvel. Acolher as contradições e complexidades das nossas emoções é necessário. Autocompaixão e acolhimento também integram o amor.
Que mundo estamos construindo? Tudo o que fizemos até agora em ativismo climático serviu de algo? Será que vai dar pra reconstruir o que ruiu em segundos? O que vai ser dos nossos descendentes? Os efeitos das mudanças climáticas serão piores do que imaginamos? Vamos ter que lidar com fake news para sempre? De onde vai sair o dinheiro para adaptar as cidades? Para onde as pessoas que perderam tudo irão depois que tiverem que deixar os abrigos temporários, que já ultrapassam 120 somente em Porto Alegre? Será que a política do estado mínimo vai mostrar sua falência agora?
É compreensível sair fumaça da cabeça. É compreensível perder o sono com perguntas sem resposta. É compreensível — e necessário — exigir essas respostas de quem ocupa posições que precisam dá-las.
A desconexão com a natureza, em todos os níveis, causa a destruição que vemos. Leva sonhos de grandes amigos. Afeta com severidade desproporcional os mais vulneráveis. Altera permanentemente paisagens afetivas. Cria cenários distópicos com barulho de ambulância, sons de helicóptero, cidades inundadas e corrida por água potável.
O caminho de volta para casa que vamos ter que reaprender juntos? A essa altura do texto, vocês já sabem qual é.
Em “Eat Pray Love”, da estadunidense Elizabeth Gilbert — obra autobiográfica deliciosa sobre um ano sabático em que a escritora experimentou a tríade do título —, ela relata que conheceu um guru balinês que, durante uma meditação, teve uma iluminação sobre a forma como deveríamos nos mover pelo mundo. Em uma confidência, ele a estendeu, então, um desenho singelo que estampava um esqueleto com quatro pernas e o rosto em formato de coração. Explicou que a receita para a leveza é ancorar-se profundamente na terra — por isso as quatro pernas — e enxergar tudo com o coração, não com a cabeça.
“O amor está dentro de nós. Ele não pode ser destruído, somente escondido”, escreve Williamson.
Que a gente aja com e por amor em prol da reconexão das pessoas com a Natureza. O caminho está no centro dessa espiral de energia de ação compassiva, firme, segura, empática e alinhada à nossa alma. Não há rebeldia maior do que a expressão genuína de quem viemos ser — e somos um canal que emana, habita, se alimenta e se abastece continuamente de amor. Qualquer outra coisa é ilusão.
Hora do chá
Em consonância ao tema da newsletter, estou muito curiosa para ler “Amor Radical”, do ativista pela paz e educador Satish Kumar, cofundador do Schumacher College. A obra foi lançada este ano no Brasil pela editora Bambual (cuja newsletter, a Travessias, já indiquei aqui).
Amo o livro “Tudo Sobre o Amor: Novas Perspectivas”, da bell hooks. Já li há alguns anos e fiquei encantada pela densidade da obra, que não se torna maçante ou difícil. Ela abordou o tema com presença e uma autoridade invejável — e realmente me abriu novas perspectivas de compreensão do amor como ação, escolha e trabalho ativo.
Qualquer livro de poesia da Wislawa Szymborska, da Adélia Prado, do Manoel de Barros ou da Mary Oliver são manifestações de amor. A criação parte do amor, lembra Clarissa Pinkola Estés em “Mulheres que Correm com os Lobos”, e poesia inspirada pela Natureza (seja a natureza interna ou externa) é capaz de nos reconectar com o que importa.
Obrigada por me lerem :) Escrevo esta newsletter com muito, muito amor.
Até semana que vem!