Voltar para casa - Artemísia #18
Não é possível falar sobre outra coisa agora: ajude o Rio Grande do Sul
A casa é uma metáfora importante e central no estudo de símbolos. Ela representa nosso espaço interno, nosso Inconsciente, nossa evolução. Em sonhos, evoca lembranças de lugares simbólicos que habitamos. Casas são cheias de significado a respeito do que ainda mora na gente, do que pulsa, do que exibimos com orgulho ou do que guardamos no fundo de um armário para esconder não só das vistas alheias, mas da nossa também.
Já falei várias vezes nesta newsletter sobre a expressão “voltar para casa” como voltar a si mesmo e expressar a nossa alma. A casa é o local no qual acalentamos nossos sonhos, investimos nossa energia e nosso dinheiro, reunimos quem amamos, recebemos amigos para jantar, construímos a vida, nos sentimos seguros. A casa é um local sagrado, que contém história, memórias, um senso de identidade e de pertencimento. Aquele quadro que se comprou numa viagem em 2003, a cozinha na qual alimentamos a família, o quarto que virou refúgio até deixarmos do nosso jeito, o edredom com um cheiro e toque específicos. Não importa de que tamanho ou de que modo. Casa é casa. É para onde se pode, via de regra, voltar e descansar.
Mais do que isso: a casa habita um bairro, uma comunidade, uma cidade. Lá, convivemos com os vizinhos de décadas, com parentes com os quais nutrimos relacionamentos conturbados, mas com vínculo de auxílio mútuo; temos a árvore na qual brincávamos na infância, a rua na qual os filhos jogam bola no final da tarde, o mercadinho da esquina que deixa comprar fiado; a oficina de chapeação barulhenta, mas familiar; a padaria que frequentamos há anos a ponto de o atendente já estender o pedido sem precisarmos proferir uma palavra. Naquele espaço geográfico delimitado por traçados imaginários, constroem-se vínculos afetivos, molda-se o senso de pertencimento.
Milhares de pessoas perderam isso, de uma só vez, no meu estado, o Rio Grande do Sul. A água é furiosa, implacável; as vigas, os objetos, os móveis e as paisagens, transitórios e frágeis. Para além dos que não têm para onde voltar, já são mais de uma centena de mortes confirmadas pela série de enchentes - essas perdas, sim, irrecuperáveis. Os desaparecidos somam 130.
Há milhares de pessoas, em centenas de cidades, sem casa para voltar. Pior: milhares de pessoas sem bairro para voltar. Há comunidades que foram varridas do mapa. Varridas. Do. Mapa. Outras milhares de pessoas vão abrir uma porta enlameada e deparar com um cenário irreconhecível. E isso é uma tragédia sem precedentes no Brasil.
Vivemos um luto coletivo que, para além das consequências concretas, também é profundamente simbólico. Nosso jeito de estar no mundo é insustentável.
Assim como todos os gaúchos — e qualquer pessoa que ainda tenha o mínimo de empatia —, estou diretamente envolvida no auxílio a quem foi afetado pela pior enchente da história do Rio Grande do Sul. Aliás, não foi uma enchente. Foram várias, como um efeito cascata. Começou em uma região e foi se espalhando a outras após dias de chuva forte e uma formação metereológica desfavorável (exacerbada pelo que vocês já sabem: mudanças climáticas). Um efeito dominó tenebroso, mas esperado em contexto de emergência climática. (Se bem que mesmo eu, que trabalho com o tema há mais de cinco anos, jamais pensei que a realidade se desenrolaria de forma tão avassaladora, veloz, escalonada e sistêmica.)
Atuo, há três dias, como voluntária na triagem de roupas em um abrigo improvisado em um Salão Paroquial do meu bairro, em Porto Alegre. Como o espaço é pequeno, ao mesmo tempo em que separamos as doações, já as destinamos aos abrigados. Portanto, ouço muitos relatos e escuto com atenção quem foi diretamente atingido.
“Eu cresci naquela casa. Não sei o que fazer agora.”
“Perdi tudo, tudo, tudo. Só saí com a roupa do corpo.”
“Não temos mais casa para voltar.”
São relatos contados em um misto de desespero, desesperança, incredulidade e entorpecimento. Não ter casa para voltar. Por onde se começa a reconstruir a vida nesse caso?
Repito: não ter casa para voltar. E não são uma nem duas pessoas. São milhares. O número exato dos que tiveram danos materiais permanentes ainda não é conhecido. Vamos ter a dimensão do acontecimento da região Metropolitana nas próximas semanas, quando as águas do Guaíba baixarem (o que não deve ocorrer tão cedo).
Os efeitos se estenderão por meses — e ouso dizer: de forma permanente. Nada nunca será como antes, para o bem e para o mal.
Ainda não estamos no momento de reflexões filosóficas muito profundas sobre o que ocorre no Rio Grande do Sul. Eu, ao menos, não estou, até porque não é a prioridade e sequer compreendemos a dimensão de tudo ainda. Por ora, focamos na redução de danos, no acolhimento inicial de vítimas na região Metropolitana e no acompanhamento da limpeza de casas e estabelecimentos no interior, em regiões como Vale do Taquari, Vale do Rio Pardo, Serra e Vale do Caí.
425 dos 497 municípios gaúchos foram afetados. Estar segura é um privilégio enorme, que tenho visto quase todos os que usufruem dele utilizarem com sabedoria: servindo a quem precisa. Tudo é muito pouco perto do tamanho do desafio, mas cada gesto conta porque, na soma, fica gigante. Estamos resgatando uns aos outros, acolhendo uns aos outros, mobilizando uns aos outros - e, em Porto Alegre, em pleno ano de 2024, implorando para que almas de outros estados doem água potável, que está escassa nas prateleiras de supermercados da região Metropolitana.
Tenho muito cuidado com o uso das palavras, porque sei que elas têm poder. Mas a sensação é de uma distopia desenrolando à minha frente. Estou tão consternada que não sinto raiva, não consigo praguejar nem quero apontar dedos agora. Não consigo. Só sinto tristeza. Muita tristeza pelo contexto, por esse sentimento coletivo de luto, de alteração permanente do nosso lugar no mundo. E ajo na contenção de danos inicial, que é o mais urgente.
Ninguém sai ileso. Ninguém está 100% bem. Diferente da pandemia, porém, estou atenta à minha saúde mental, e recomendo a todos fazerem o mesmo. Só ajuda de verdade quem está forte em si.
No meio de tudo, e embora em proporções bem menores do que outras pessoas, também tento lidar com a alteração permanente de paisagens afetivas da minha vida, o que reforça essa sensação de pertencimento. De onde sou? Em quais lugares me sinto acolhida e por quê?
A região na qual nasci e cresci e onde ainda moram meus pais, o Vale do Caí, foi atingida de novo pela força das águas, após ter sofrido uma enchente histórica em novembro do ano passado. Na ocasião, o rio Caí subiu 16 metros em São Sebastião do Caí. Agora, foram 17,60m. As famílias de diversos amigos foram diretamente afetadas — a água chegou em locais que jamais se pensou ser possível. Meu melhor amigo cobre a enchente no maior veículo de comunicação do Brasil, enquanto a família dele perdeu tudo (de novo), na divisa entre Harmonia e São Sebastião do Caí. Na terça-feira, ele teve de ser evacuado do próprio prédio, em Porto Alegre, pois a água avançou pelo bairro.
Não é normal. Não pode ser.
Voltar para casa pós-enchente é a parte mais difícil. São os relatos que escuto de amigos e conhecidos. É encarando o que restou que as pessoas se dão conta da proporção do que as aguarda, que elas confirmam a alteração permanente do que parecia sólido, seguro. Elas abrem uma porta cheia de lama (quando ainda há porta), miram os móveis espalhados por toda a casa, desviam de cacos de janelas quebradas, tentam salvar fotografias irreconhecíveis, pisam em memórias de infância. Pertences, objetos, móveis, lembranças ficam envoltas naquele material fétido, sujo. O bairro e a comunidade amanhecem completamente diferentes, com o cenário de destruição pairando.
Então, elas inevitavelmente se perguntam: “vou continuar aqui até quando? para onde vou? onde será minha nova casa? a água vai continuar subindo tanto todas as vezes?”. Nós sabemos muito bem quem tem dinheiro ou não para recomeçar, e infelizmente também temos a resposta para a última pergunta.
A casa tem um poder simbólico gigantesco. Estamos mexendo com essa percepção de forma coletiva. Para além da dor imensurável de quem perdeu pessoas queridas, teve de deixar para trás seu lar e não sabe por onde começar a reconstruir, também habitamos de forma muito equivocada outra casa: o planeta Terra. Por isso, a noção-casa de espaço individual e familiar foi alterada para milhares de pessoas. Precisamos reaprender, juntos, a voltar para casa de outros jeitos.
Nesse caminho, é hora de se reconectar à nossa comunidade, ao nosso lugar no mundo de coração e estender a mão para que outras pessoas se levantem. Tenho visto gestos e ações que me emocionam. Pessoas doando muito, seja dinheiro, tempo ou vontade de fazer a diferença. Projetos de destinação de alimentos, colchões e roupas a abrigos tomando proporções enormes. Há algo especial acontecendo no meio da catástrofe, e eu espero que isso não arrefeça quando as pessoas saírem dos abrigos, porque é naquele momento que o trabalho de verdade começa.
Então, reforço: usem seu privilégio. Usem com sabedoria, presença plena, coração aberto e amor. O desafio que se estende à frente é grande, mas sempre sabemos como servir. Centre-se, permaneça forte e ajude. Nós moramos sob o mesmo teto.
Como ajudar o Rio Grande do Sul?
A Gabi Tomasz está na linha de frente das doações a abrigos em Canoas, que recebe pessoas de várias cidades no entorno também. O projeto começou pequeno e tomou uma proporção bem grande — justamente pela seriedade e energia que ela dedica a ele. Acho muito bacana doar diretamente para pessoas físicas porque elas estão em contato direto com as necessidades do abrigos, que é o que ela tem feito junto a uma equipe. O PIX dela: (48) 991818818.
O Espaço Marlon e Marcelinho, localizado no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, está com uma mobilização linda para atender a comunidades vulneráveis da zona norte da capital. Conheço o projeto e admiro muito. Doem pela chave PIX: espacomarlonemarcelinho@gmail.com.
O governo do Estado do Rio Grande do Sul tem um PIX solidário, que eu oscilo entre achar ok e achar tenebroso (não tenho opinião fechada). O problema dele é só um — e já é bem grave: as doações que chegam por lá demoram MUITO a ser usadas. As pessoas precisam de tudo AGORA. De verdade, elas precisam de tudo, de comida, de abrigo, de roupa, de medicamento. E não dá para esperar. Indico esse canal oficial em apenas um caso: doações internacionais. Aqui, há mais informações sobre isso.
A Frente Quilombola tem arrecadado doações destinadas a comunidades quilombolas de Porto Alegre. Chave PIX é 51981259914 e cai para Tânia, que é liderança do Quilombo Kédi.
A Articulação dos Povos Indígenas lançou uma campanha para auxiliar as comunidades afetadas em todo o estado. Mais informações aqui. Chave PIX: 566601e8-72b1-4258-a354-aa9a510445d1.
Surgiu um projeto incrível chamado Meu Lar de Volta, que pretende conectar quem precisa de ajuda para limpar suas casas a voluntários dispostos a auxiliar. Sei que em cidades pequenas as pessoas simplesmente saem de casa com balde, pano e rodo e oferecem ajuda. Na região Metropolitana, uma organização maior será necessária. Conheçam aqui.
E em longo prazo?
Compartilhe. Fale sobre o tema. Não arrefeça quando passar essa onda inicial de comoção. A reconstrução vai ser lenta e vai exigir muitas habilidades, o que significa que TODO MUNDO tem algo para contribuir.
Se engaje em questões ambientais e climáticas. Hoje, a tragédia foi no Rio Grande do Sul. Amanhã, será em outro lugar. Infelizmente.
Quando surgirem outras iniciativas, à medida que formos identificando as necessidades, divulgo aqui :)
Há esperança no meio dessa tristeza, gente, e ela está nas pessoas se auxiliando. Nunca vi tanta mobilização — e, como disse, ela não pode diminuir. Vamos juntos pensando em soluções sistêmicas e nos acolhendo. Não podemos e não iremos parar.
Estou lendo isto desde a casa de meus pais. Onde eu nasci. Embora eu já falo 'a casa de meus pais', e não 'minha' (não moro aqui há muitos anos), imaginei por um momento tudo aqui cheio de lama. O esforço deles por construir cada detalhe, cada parede.. Estou muito triste, amo muito o Brasil, é e siempre será a minha segunda casa. Abraço forte todos vocês, Cândida, envio orações e forças 💚