Segunda-feira à noite bati o ponto clássico no La Topa Tolondra, um dos bares de salsa mais famosos de Cali. Revi um amigo - que no fim das contas foi o primeiro homem que beijei quando cheguei na cidade. Não continuamos saindo, mas mantivemos a amizade. Ele, um colombiano de Bogotá, leva três meses em Cali visitando a mãe. Este ano, ele passou seis meses trabalhando em um cruzeiro pela Europa, e, enquanto decide os próximos passos, desfruta intensamente uma temporada caleña.
Eu estava parada em volta da pista de dança, desejando que me tirassem para bailar a noite inteira - coisa que, para meu aborrecimento, não estava acontecendo. Olho para o lado, o vejo, vou cumprimentá-lo e percebo que ele está estranho. Pergunto: “Pasó algo?”. Os olhos dele enchem de lágrimas, ele meneia a cabeça em sinal positivo e pergunta: “Quieres hablar afuera?” Fico assustada e caminhamos em direção à porta.
Mal chegamos na calçada e ele desata a chorar, de coração partido. Conta que veio ao bar com uma viajante estrangeira que conheceu na escola de dança que frequenta. No dia anterior, os dois fizeram trilha, dividiram momentos, estavam teoricamente - na cabeça dele, ao menos - juntos. Ele comprou uma cerveja para ela naquela noite, dançaram, estavam sentados na mesma mesa, até que ela levantou e foi conversar com um professor de salsa, deixando-o completamente sozinho. A conversa esquentou, os dois se aproximaram - e o resto vocês já sabem.
“Me siento un tonto! Tengo que aprender a no meter el corazón! Siento mucha rabia también!”, ele exclamava, entre lágrimas. Eu não sabia o que dizer, em um misto de pena e de incredulidade pela situação (a ironia da vida: eu, a anterior quase algo brasileira, o consolando).
Ele me convidou para tomar uma cerveja em um bar barato do outro lado da rua, porque já não queria mais voltar para dançar. Deus me livre encarar a situação de novo e rever a moça com o novo affair. Atravessamos e nos sentamos nas escadas daquela tienda, em uma cena que, agora, acho muito engraçada pelas mensagens que, em si mesma, contém.
Segurando um latão de Poker, ele me olha desolado e dispara: “Sei que você não é psicóloga, mas por que eu faço isso? Por que sempre me apego rápido às mulheres e saio machucado?”
Penso comigo, disfarçando uma risada de canto: “Não é possível que vou ter que dizer para ele agora, em voz alta, tudo o que eu também preciso ouvir. Olha, vida, você tá de parabéns!”
Calma, respondi: “Você se apega rápido porque essas mulheres reforçam o que você pensa sobre si mesmo.”
E ele: “Mas como eu mudo isso? Me diz! Eu quero mudar!”
“Terapia!”
“Já tentei e não adiantou!”
“Mas tenta de novo, é um processo… não é de uma hora para a outra.”
O papo de inconsciente e simbolismo penso que já seria um pouco mais denso do que o momento pedia. Ele me confessou, ainda entre lágrimas, a relação complicada com a família e, especialmente, com a mãe. Entendi que, talvez, tudo o que ele precisasse, no fundo no fundo no fundo, era só se distrair e não pensar mais no ocorrido. Antes de mudar de assunto, tentei oferecer um pouco mais de suporte, em outra fala que também servia para mim: “Isso não tem nada a ver com o seu valor pessoal. O que essa menina fez não é sobre você, necessariamente. Você ainda vai encontrar alguém. O problema não é meter o coração e se apegar rápido, mas quem você escolhe para fazer isso.”
Mudamos de assunto, conversamos banalidades e, por um momento, eu pensei: “Seria muito ruim nos beijarmos de novo e irmos para casa juntos?”. Sei que poderia ter acontecido. Mas então relembrei: “Nenhum dos dois precisa disso hoje.”
Era quase uma da manhã, hora em que o bar encerra as atividades. Atravessamos a rua novamente, reencontrei meus amigos e fui para casa sozinha. No outro dia, ele já pegaria um voo a Bogotá, porque falou que Cali havia se tornado uma droga. Nos três meses desde que chegou à cidade, saiu quase todas as noites. Precisava voltar aos eixos, respirar.
O desfecho - cada um pro seu canto - foi o mais certeiro. A circularidade da vida não precisa ser tão literal também.
Naquela mesma noite, a primeira na qual durmo em um Airbnb depois de sair do hostel em que voluntariei por dois meses, sonho que converso com minha tia pela primeira vez - aquela que tenta falar comigo há um tempo e que estava ao meu lado na cerimônia de ayahuasca.
No sonho, eu a digo: “Imagina que incrível seria minha vida se eu não tivesse medo da rejeição em relacionamentos?” Falo em espanhol com ela, ao que ela não entende e preciso traduzir. Explico: “Eu ainda estou presa em uma linguagem limitante, que não me permite ser totalmente eu.” Choro muito, e ela me consola.
Cali cura uma ferida de Afrodite. Essas sombras para as quais eu olho, e sobre as quais já contei aqui, são meio adolescentes, um tanto quanto o próprio roteiro de Emily in Paris, série da Netflix cuja quarta temporada assisto esta semana. Não surpreende minha cara cheia de espinhas, coisa que não vivi dos 13 aos 18 na intensidade de agora. Mesmo assim, reforço para mim que tempo certo é aquele no qual vivemos o que se apresenta, e não o tempo no qual dizem que deveríamos ter vivido.
O roteiro da série é criticado por ser clichê e um pouco delusional, essa palavra que virou moda no TikTok. Penso que tem suas falhas e seus lugares-comuns, mas assisto às novelas pessoais de Emily e sinto que, depois da minha temporada caleña, não duvido de mais nada. A vida é mágica mesmo, e quando estamos onde deveríamos estar - e prestamos atenção às coisinhas aparentemente fortuitas - saltam aos olhos essas coincidências malucas. Hoje, já não considero mais Emily in Paris uma ficção delusional, mas que vivo quase a versão latina e mochileira daquele roteiro meio bobinho e divertido.
Vou testar minha relação com Cali. No final de semana, sigo viagem pela Colômbia - onde posso ficar por mais 90 dias, porque pedi extensão do permiso temporal de permanéncia. Algo dentro de mim me diz que volto, sim. Eu volto. Não sei quando nem por quanto tempo nem para quê, mas eu volto. Cali me auxiliou a acessar um poder pessoal que eu desconfiava que estava aqui dentro, mas que ainda não havia brilhado.
A grande questão é: “É a cidade que me faz ser assim ou posso levar essa Cândida comigo a qualquer parte a partir de agora?”.
No sábado, saí com um menino muito doce e inteligente. Fomos passear no parque, tomar sorvete, uma coisa bem prosaica, diferente das festas e outras histórias que vivi até agora na Colômbia. Ele me perguntou, genuinamente curioso, o que tanto gosto em Cali. Quando me indagam isso, torna-se cada vez mais desafiador esboçar a resposta de forma decente. As pessoas me puxam, por meio da interrogação, um lado racional, sendo que, no fim das contas, talvez o que tenha ocorrido não possa ser explicado de forma tão cartesiana. Cali é mais sobre como me sinto, e menos sobre o que faço ou não. Eu me sinto feliz, plena, contente - e, a partir disso, tudo se alinha.
O moço compartilhou, então, que enquanto morou em Paris acessou uma versão sua muito diferente da anterior e que amou aquela pessoa. “E eu levo essa versão comigo até hoje, inclusive agora que estou de volta à Colômbia”. Não deixei de notar o brilho nos olhos dele quando ele proferiu isso - e bom, ele tem um sorriso lindo e, quando ria, as ruguinhas em volta dos olhos o deixavam ainda mais charmoso. Só por esse insight já valeu o date. A vida é mágica, e não arredo o pé dessa afirmação.
A permanência é ilusória. Talvez, eu tenha achado o meu lugar temporário, a cidade em que eu preciso estar para viver certas coisas agora, até que o inconsciente aponte, de novo, que é hora de seguir me movimentando para além dela e para além da Colômbia.
Enquanto danço salsa, sou guiada. Não preciso pensar nos próximos movimentos, deixo isso para o meu par. Meu desafio é ser uma boa seguidora; isto é, manter a posição correta do corpo para sentir os comandos. Não é sempre assim que tudo deve ocorrer: na fluidez?
O meu maior crush caleño é um homem que não sei como se chama. Tenho uma vaga lembrança, mas não sei se está correta, porque toda vez que danço com ele fico tão nervosa que não consigo falar direito. Ele foi a primeira pessoa que me tirou para dançar no La Topa Tolondra, e já bailei com ele mais algumas vezes por lá. Não preciso nem dizer que ele é um exímio dançarino de salsa. Uma amiga portuguesa nos viu dançando na primeira vez e disse: “Vocês têm muita química!” Quase morri. Faz mais de duas semanas que não o vejo, e corro o risco de sair da cidade sem descobrir exatamente como ele se chama. Ela me repreendeu carinhosamente pelo Instagram: “Se arrisca! A vida dura duas horas.”
Como seria minha vida se eu não tivesse medo da rejeição? Ainda mais livre e fluida e presente, eu sei.
Desde que passeio pela vida com mais leveza, tenho uma certeza cada vez mais corroborada pelos acontecimentos: não quero passar batido pelo tanto de coisas bonitas que existem. Quero ser feliz, mais que tudo. Quero manter esse olhar maravilhado de uma criança de sete anos. Não quero endurecer. Quero acreditar em relacionamentos saudáveis, em amizades duradouras, em amores arrebatadores, em coincidências malucas, em roteiros de cinema, em uma vida próspera, em um mundo melhor, na liberdade das mulheres e na reintegração da bruxaria como a sabedoria que já nos habita.
E desejo, de coração, que você também acredite. Que você também passeie mais leve pela vida, confiando que tudo que acontece tem um motivo. Que as coisas são circulares, que dão certo, que são lindas, que os símbolos são divertidos de observar, que é gostoso acordar pela manhã e se deixar ser surpreendido.
Quero me maravilhar, quase como a Annie with an E, com as coisinhas mais bobas e pequenas - seja com a Natureza, seja com as cores de uma pedra, com o pôr-do-sol, com um amor inesperado, com a minha presença, com dormir até mais tarde, com dançar até doer os pés, com rir até a bochecha doer, com as possibilidades infinitas diariamente estendidas à frente, com um café quente e forte, com um doce tão gostoso que quase escorre uma lágrima de emoção.
Eu quero muito desfrutar do meu tempo na mais absoluta presença, em um senso de força pessoal tão profundo e enraizado que não pode ser movido por ventinhos nem por furacões. Eu quero muito curar as feridas que precisam ser curadas, para viver com cada vez mais alegria, presença e coragem.
E desejo, de coração, que você também saiba valorizar, cada vez mais, o bem mais precioso do qual dispomos: o tempo. Oxalá você tenha coragem de ser quem é, porque é aí, precisamente nesse ponto, que tudo flui. Tempo é vida - e a vida, não vou cansar de repetir, é mágica. Até tomando um latão barato, nas escadas de um bar caleño, consolando um ex-quase algo para receber a mensagem que precisa ser recebida do jeito mais inusitado. Prestem atenção.
Muito lindo o teu relato e teus insights! Vais descobrir, um dia, que a tua casa é o teu ser, não é algo exterior à tua consciência. De qualquer modo, vou colocar Cáli no meu radar porque não fui até lá, talvez por preconceito. Obrigada! Namaste! Bjs.💕
que texto simplesmente encantador e... mágico. quando penso na minha vida, especificamente, também me enxergo nos roteiros dos doramas com os quais me identifico e reparo nas coincidências que a vida me oferece. tenho acredito em bruxaria e oráculos, e que os lugares nos quais queremos permanecer de fato fazem parte de nossa identidade, também. obrigada pelas palavras ✨️