A cura é um processo em espiral. Você vai revisitar os mesmos lugares, mas de uma perspectiva diferente. Ao passar por aquele ponto doloroso, vemos a situação de outro ângulo: com mais distanciamento do Ego e mais próximos do que Jung nomeia de Self - ou seja, da nossa Alma, de quem realmente somos.
A temporada colombiana é uma aproximação à verdadeira essência da minha Afrodite, que levanto pela mão e reverencio.
Viemos à vida desfrutar e sentir prazer, ainda que esses músculos tenham sido atrofiados já na infância.
Na medicina, desbridamento é a técnica de limpar ferimentos, tirar a sujeira e a pele necrosada para expor o tecido saudável. Assim, o processo de cicatrização é pleno e mais rápido.
Para além de Esplêndida, também me apelidaram, no hostel, de Bándida - um trocadilho com Cándida (e esse acento agudo é proposital, porque os hispanohablantes só conseguem pronunciar meu nome assim).
A versão que é julgada como bandida é o que Cali também trouxe à superfície - e mergulhando de novo na profundeza desse desejo imenso de vida, a sexualidade natural de uma mulher vem à tona. A permissão do prazer provém da conexão com a Deusa que vive em cada uma de nós, dessa Afrodite que pede para ser vista, integrada, colocada em seu devido lugar.
Enxergando cada ponto dessa pele necrosada, suja de culpa cristã e maltrato com o feminino, podemos começar a cura.
Nem todo desbridamento é dolorido. Alguns, a gente pode fazer gozando.
Para além do feminismo liberal, que prega a liberdade sexual feminina como a contabilização excessiva de parceiros e/ou parceiras amorosos, a reintegração da sexualidade saudável vai muito além de despir-se e transar.
A sexualidade é a permissão plena da experimentação do prazer corporal. É a intimidade profunda consigo mesma. É estar confiante na própria pele - e não relegar, de forma alguma, nosso gozo e nossa felicidade a outra pessoa.
Há coisas que só cabem a nós. Afrodite sabe.
Tudo o que é afrodisíaco está associado para muito além da consumação do ato sexual. Afrodite representa a permissão do prazer de dançar, de comer, de dormir, de gozar a própria presença, representa o desejo de viver plenamente sua essência magnética e brilhante. Por fim, quando isso está integrado, é que transar e gozar na cama (com ou sem outra pessoa) pode, também, ser vivido em sua plena potência.
A cura coça, incomoda, dói. Mas depois que o ferimento está limpo, a exposição da pele saudável abre espaço para a cicatrização definitiva.
Sem suturar as feridas e cuidá-las propriamente, vamos caminhar a vida inteira com ferimentos expostos, inflamados e necrosados, impedindo movimentos, saltos, e experiências oceânicas, do tamanho do que merecemos.
Para isso, é preciso jogar luz em cada uma delas. Sombras são feridas que não foram expostas ao desbridamento. Se não olharmos esse amontoado de pus inflamado cara a cara, o Universo se encarrega de criar situações para escancará-las. A gente que lute - e trinque os dentes para suportar a dor durante a limpeza.
Má notícia: tenho queloide.
Boa notícia: cicatrizes são curas bordadas na pele.
Em alguns desbridamentos, a ferida sangra.
Sangro muito, mas é bonito ver que olho para o líquido vermelho de forma diferente do que há alguns anos. Hoje, o considero mágico. Encho as mãos com esse sangue do meu lado selvagem mais ferido - e, com ele, escrevo essas palavras, reintegrando o prazer, gozando a vida.
Sou uma mulher livre. E sou porque, cada vez mais, somos - no coletivo, no plural, segurando as mãos umas das outras, defendendo nossa liberdade, nossos desejos, nossos erros, nossas complexidades.
Uma grande amiga minha - que tenho a honra de poder dizer que é uma das leitoras mais assíduas desta newsletter - me disse, há duas semanas:
“Não há nada mais incrível do que ser uma mulher solteira fazendo sexo aos 30 e poucos.”
A imensidão de já conhecer seu corpo, estabelecer limites, escolher melhor e naturalmente brilhar sua essência costuma vir acompanhada de experiências sexuais mais maduras. Não só porque a potência do prazer aumenta, mas porque, pouco a pouco, puxando o fio das camadas de culpa que nos incutiram na infância e na adolescência, nos permitimos esse ato, casual ou não, com mais naturalidade.
Sexo é, também, uma brincadeira. O corpo é uma festa, já diz Galeano. E a culpa só foi incutida nas mulheres, não nos homens - o que surpreende um total de zero pessoas.
É crime ser uma mulher livre? Se bandida é para ser uma ofensa disfarçada de piada, não deu certo. Pego a arma - que é minha vontade pulsante de viver - e vou para a noite brilhar, mais uma vez.
Ano passado, tive um relacionamento curto, intenso e significativo com um homem que me abriu um caminho largo de autoconhecimento. Ele encarna o arquétipo de Hermes, e lembro de nunca ter sentido tanto tesão em uma pessoa antes. Eu o olhava e ficava completamente louca, desde o primeiro momento em que o vi, três anos antes de sequer nos beijarmos. Quando o destino tratou de nos unir, transávamos muito. Eu o olhava lavando louça, cozinhando, dirigindo, caminhando, falando, tomando cerveja, fazendo piada, rindo - e sentia um tesão que me espantava, porque era inédito. Eu poderia dar para ele a qualquer hora.
Hoje, entendo que o tesão que eu sentia era proporcional à vontade de viver que ele me despertava. Sei que viajo porque aquele cara me abriu passagem à reintegração do que também pulsava em mim e eu nem sabia ainda. Ali, ficou evidente que a sexualidade saudável é uma chama que brilha dentro da gente.
Em meio às minhas vivências novelescas em Cali (sério, são roteiros dignos de Malhação, o que indica que é uma cura adolescente), jogo luz na minha ferida e inicio o doloroso processo do desbridamento.
Descubro que tenho uma vontade de viver que até então eu desconhecia - e isso é incrível. Mas também esbarro em muita dor: o julgamento, os mal-entendidos, a dificuldade de algumas pessoas aceitarem que entre o ponto A e B há mais do que uma linha reta, e que entre a imagem de puta e a de santa há uma liberdade sagrada que pode - e deve - ser reintegrada.
Peguei um caminho inusitado para ir ao shopping na terça-feira passada e aportei, sem querer, em uma livraria mística. Puxei da prateleira um livro sobre sexualidade feminina - e soube, na hora, que teria que levá-lo comigo.
Logo na abertura, a autora já desfaz a noção habitual que carregamos sobre sexualidade:
“Sexualidad es la relación íntima que tienes contigo misma, la cual incluye la conexión con tu cuerpo, tus genitales, tus emociones, tu erotismo y tu placer.”
Ou seja, vai além do sexo em par - é uma relação mais profunda com o feminino que nos habita.
Ao longo das páginas que já li, ela convida as leitoras a olhar profundamente para feridas e noções pré-estabelecidas com nosso corpo-casa. Por exemplo: como era nossa relação com o corpo e nosso mundo emocional na infância? Como aprendemos a anular nossos genitais? Que tipos de coisas ouvimos sobre sexo e sexualidade? Como foi nossa primeira menstruação? Como nossas vivências sexuais afetam outras áreas da nossa vida?
Há uma forte conexão entre o mundo emocional e o corpo. Tudo o que nos acontece permanece registrado no corpo, até que alquimizemos o que ocorreu.
A culpa que carregamos por sermos mulheres livres que vivem sua sexualidade abertamente é pesada. Ou nos habituamos à narrativa de que somos libertinas (ouvi essa palavra esta semana, o que me deixou em choque), ou nos habituamos a de inocentes, puras e ciumentas. Geralmente, a barra oscila entre ambas, porque nem sequer nos é dado somente uma carapuça. A libertina ciumenta também me habita, admito.
O que me sustenta na caminhada é a lembrança de que gozar é maravilhoso. Então não paro, mesmo com o julgamento. Conheço a sensação de ser dona de mim, de habitar meu corpo, honrá-lo e ser feliz na minha pele. É com isso como guia que prossigo. O orgasmo está também em acordar feliz todos os dias e em encontrar sentido em uma vida que, para tanta gente, parece um retrocesso.
Há que se ficar em paz com a narrativa que nos sustenta por dentro. Nem puta, nem santa: livre para viver a minha sexualidade com quem, onde e quando eu quiser. Aberta para gozar a vida e para estabelecer, finalmente, uma relação saudável comigo depois do desbridamento.
Olho para essa ferida e tiro cada sujeira para ela cicatrizar. Eu e minha Afrodite fazemos isso não só pela gente, mas por todas as que vieram antes e pelas que virão depois.
Hora do chá
Este texto chega com dias de atraso em relação ao envio normal da newsletter, que ocorre todas as quintas-feiras. Devido à intensidade e à importância do tema que trago nesta edição, deixá-lo em banho-maria foi fundamental para que ele se desvelasse e fosse escrito dentro de mim. O que vocês leem também foi parte do desbridamento.
Afrodite é assim: afeita ao prazer. Às vezes, convém puxar Atenas para conferir disciplina e manter o ritmo das produções. Mas como já contei em outra edição, este arquétipo anda meio cansado dentro de mim. Como em Cali estou olhando para essa cura que relato aqui, deixei Afrodite comandar. Enviamos o texto porque estamos prontas.
Sincronicidades ajudaram a assentar tudo o que trago aqui. Espero que desfrutem - no sentido mais afrodisíaco possível - dessas palavras. No livro que trouxe acima, há um trecho que me convenceu de enviar esta edição: “Sé que podrás tener otras historias de transformación a la espera de ser contadas. Relatos sobre cómo has regresado de las cenizas después de circunstancias dolorosas y difíciles. Por eso te digo: dales vida a esas memorias. Hay mucha gente afuera buscando una luz en medio de sus incertidumbres. No sabemos a quién, con nuestro testimonio, podemos alumbrarle el día.”
Vejo vocês na próxima edição, que será quinta-feira! :)
Estou absolutamente amando os apelidos que você anda ganhando por aí, bándida esplêndida. Eles tem me dado vontade de te conhecer 🙈
“mergulhando de novo na profundeza desse desejo imenso de vida, a sexualidade natural de uma mulher vem à tona” achei isso tão bonito, de uma simplicidade e naturalidade gigantes. Delícia te acompanhar nessa bela aventura que você está vivendo, inspirador.
Preciso de, pelo menos, algumas horas de conversa com você. Tudo resoando em mim amiga, obrigada por compartilhar esse processo ❤️