Atena cansada - Artemísia #34
Se o trabalho já foi o centro da minha vida, ressignificar isso exige tanto trabalho quanto equilibrar pratos que nem quero comer
Estava em um Centro de Tradições Gaúchas comendo pizza. O cardápio nem combina com o lugar, tão afeito a churrasco. O garçom ofereceu um sabor doce que eu queria muito, mas eu tinha vergonha de pedi-lo. E se faltasse aos outros? O que pensariam de mim pedindo esse sabor inusitado? Mesmo perdida nesse redemoinho de “e se”, tomei coragem e a voz saiu quase inaudível.
“Eu quero…”, disse fininho, com reticências e vergonha.
Colocaram no meu prato. Mas eu queria aquela pizza toda só para mim. Não queria dividi-la. Outras pessoas me viram comendo e também pediram. Fiquei braba: queria mais pedaços, queria me lambuzar daquele sabor depois que a voz saiu para aceitá-lo.
“Não!”, disparei com uma força que não sei de onde veio. Me olharam espantada.
Acordei.
Por que eu aceito comer o que não quero?
Por que tenho vergonha de pedir o que quero comer?
Por que ainda me perco nos redemoinhos de escassez?
Por que ainda é tão difícil impor limites?
Não preciso nem pensar muito, a resposta já escorrega para a ponta dos dedos: é culpa do medo.
O medo alimentou o arquétipo da minha Atena durante anos e anos — quase toda a minha vida, para ser bem sincera. Passei os meus 20 e poucos forjando uma reputação profissional com cuidado e acumulando burnouts. Em vez de alimentar aquela energia interior com entusiasmo, alegria e tesão pelas tarefas e de oferecê-la presença plena no que se propunha a fazer, constantemente a servia com pratos que ela nem gostava de comer. Coitada. Virava uma mistureba intragável que gerava dores no estômago com frequência, e não dava para discernir o gosto do que realmente era saboroso.
Na mitologia grega, Atena é a deusa da guerra, do trabalho, da inteligência. Expressa-se na vida por meio da dedicação e da presença no que fazemos. No mundo capitalista, é ela que nos guia pelo mercado de trabalho, sendo a pessoa que “senta a bunda na cadeira” e entrega tudo bem-feito. Quando uma Atena se propõe a algo, ela executa com precisão, acurácia e foco. Ela é ambiciosa e sabe o que deseja. Mas, na sombra, ela não consegue parar.
Já faz um ano que sinto que minha Atena está cansada. Recuperar a energia que ela expressava tem exigido, também, que eu a alimente muito bem e a coloque para dormir o tanto que tinha de sono atrasado. Sozinha, ela não consegue mais executar tarefas — e, se não brilha o olho de Ártemis, não temos trato nenhum feito. Nesse caso, Atena dá um bocejo e vai dormir. “Não vou mais sustentar nada sozinha”, é o que ela me diz. “Se vira”.
Houve um tempo em que eu achava lindo repetir: “estou trabalhando muito”. Hoje, se alguém me diz isso, sinto um pouco de pena.
Não é novidade que o capitalismo — e o sistema de funcionamento deste mundo — é assentado na lógica da escassez. É uma contradição antinatural, uma vez que a natureza se expressa por uma inteligência infinita envolvida na abundância e na prosperidade, no respeito aos ciclos, no entendimento de que é preciso regenerar (e autorregenerar).
Quanto mais viajo, mais entendo: é preciso trabalhar para viver, não viver para trabalhar. É um movimento que percebo cada vez mais latente em amigos, já é reproduzido pela geração Z e também já é feito por viajantes com quem compartilho meus dias nos últimos quase dois meses.
Fico com vergonha quando preciso declinar convites especiais para cumprir com prazos e metas que não me acendem e dar checks em tabelas processuais sem cabimento. Pior: eu me vi fazendo isso, no meio dessa viagem, em um projeto que, em si mesmo e para além de mim, roda pelo medo de perder, não pelo amor em servir. O dinheiro que caía na conta, a cada final de mês, não valia o embrulho no estômago a cada vez que abria o aplicativo gerencial para dar andamento àquelas tarefas. Pedi para sair, com uma sensação absurda de alívio.
De forma ainda mais latente, tornou-se visível que, em trabalhos sem sentido, negociamos o inegociável: nosso tempo.
Quando me dei conta de que abria mão de vivências extraordinárias para cumprir tabela — e me alimentar, portanto, de coisas que eu nem queria comer —, decidi romper o ciclo. “Não está sendo fácil”, já diz o meme, mas vale cada segundo que volta a ser plenamente meu.
Ser millenial e ressignificar o mundo do trabalho dá trabalho. Haja ideias internalizadas para escrutinar e romper.
Esta semana, em reunião com um colega de trabalho, ele me confessou, em tom de brincadeira que carrega um grande fundo de verdade: “Se fosse por escolha, eu não trabalharia mais, já estaria aposentado. Muito bonito o propósito da empresa, mas não gosto de trabalhar. Estou aqui pelo capitalismo”. Eu o entendo, principalmente em um mundo empresarial que, cada vez mais, obriga tarefas sem noção e mal pagas embrulhadas em “propósito”.
Há, porém, algo muito interessante no trabalho quando ele é visto sob a perspectiva de colocar-se a serviço do mundo. Servir é bonito. Trabalhar é pesado.
Todo mundo — repito: todo mundo — tem dons e características naturais que auxiliam no caminho de expansão individual e coletiva e que só aquela pessoa pode colocar no mundo de forma única. Privar o mundo disso é uma perda coletiva.
Mas sim: saber conciliar os talentos com as demandas e pressões externas é o desafio que a vida nos convida a resolver.
Lembrete para pendurar na parede: aceitar trabalho unicamente por medo de ficar sem dinheiro é cilada. A conta emocional chega — e é cara.
Enquanto matutava este texto, pensei que minha Atena estivesse emburrada, cansada e jogada no canto se negando a fazer qualquer coisa. Ao longo da escrita, entendi que ela está aqui comigo, na regularidade desta newsletter, no cumprimento de tarefas que me acendem (segurando a mão da minha Ártemis), buscando outras oportunidades que nos deixam felizes e que, descansada, ela vai se dedicar com muita energia ao que a interessa de novo.
Antes disso, porém, ela quer ser alimentada com comidas específicas, descansar mais, ver outras coisas e adquirir conhecimento para além de livros e meios tradicionais. O trabalho não é mais nosso centro de identidade, como ao longo de mais de uma década já foi.
E nada me tira da cabeça que, quando uma mulher se pergunta: “o que eu quero comer?”, descobre a resposta e não para até servirem aquele prato, uma minirrevolução acontece. E as minirrevoluções também são coletivas.
ja muito pensei sobre isso, ja muito abandonei empregos, ja muito tentei mudar de área, e ja muito experimentei combinações entre trabalho e serviço. eu abandonava o trabalho, vazio de sentido, para abraçar o serviço (servir ao mundo, servir ao outro) -- ficava sem grana e voltava para o trabalho. cheguei à conclusão de que o trabalho está num lugar e o serviço está em outro, cansei de tentar juntar. não mais busco propósito no trabalho. uso o resultado do meu trabalho -- dinheiro -- pra buscar meu propósito em outros lugares. e tudo bem.
sinto que uma das coisas mais difíceis nesses tempos é encontrar um trabalho que você possa fazer e pensar "isso aqui realmente faz diferença, isso aqui é real, palpável", ainda mais em tempos de tech que todo mundo é um dev disso, designer daquilo, especialista numa terceira coisa. do lado de cá, sinto que isso só alcança algum lugar, só faz sentido, quando é algo que posso tocar: um móvel, um conserto, uma construção. não sei se isso faz sentido, mas depois do que passei nos últimos dois anos, o trabalho só faz sentido se eu puder entregar algo que outra pessoa vai ver, vai tocar, vai conviver. como você disse: servir é bonito. a forma como consegui ressignificar o trabalho foi entendendo que eu quero viver em comunidade, independente de qual seja ela (família, amigos, estudantes de um curso, colegas de alguma área profissional etc). pra viver nessa, eu tenho que desempenhar um papel - ou uma profissão, como é o caso do texto aqui - que alcança a esses membros, que tem um significado.
não sei qual vai ser o ressignificado do trabalho pra ti quando isso se acabar, mas desejo toda sorte e boa aventurança pra ti nesse momento.