Meter o louco - Artemísia #28
Integrar a loucura que nos habita torna a jornada mais leve e interessante
Dizem que não é bom ter uma carta favorita do Tarot — mas eu tenho. É O Louco.
Quando li a descrição da carta no livro “Jung e o Tarot”, entendi na hora que era exatamente aquela loucura que faltava incorporar na minha vida.
O Louco não tem número no baralho de Marselha. Acima da sua imagem, apenas o zero - o que indica que essa carta pode potencializar qualquer outra que venha na sequência e que não há lugar fixo para ela, o que a deixa livre para dançar entre todas as outras.
O zero transforma o um em um milhão. Circular, o algarismo não tem início nem fim, representando a união com o Mistério.
Não à toa que nos baralhos atuais — aqueles que usamos para jogar canastra — essa carta seja uma das únicas que tenha persistido e mantido seu valor original: o de ser um coringa, virando o jogo de cabeça para baixo, mudando o cenário repentinamente e deixando muitas pessoas de cabelos em pé.
É porque O Louco só segue uma coisa: a própria intuição.
Estou há dez dias no Peru e cruzei com muitas pessoas nesse curto período. Todas, sem exceção, são de alguma forma guiadas pela energia desse arquétipo.
Conheci mochileiros, viajantes, anfitriões de Couchsurfing, artistas, pessoas recém demitidas, gente tirando período sabático, outros apenas atendendo a um chamado ainda inexplicável (meu caso), e todas ouviram uma coisa um pouquinho maior para que estejam se experimentando, testando uma nova realidade, vivendo para além da zona de conforto.
Assim como o personagem da carta, essas pessoas carregam uma trouxinha de roupas leve e bem selecionada (porque não dá para sustentar tanto peso na mochila) e contemplam um precipício cheio de possibilidades à frente, com sorriso e piadas e coração aberto. É a jornada que conta, afinal, e quem viaja parece entender essa dinâmica.
Com o cão-de-guarda que avisa de perigos em seu encalço, um cachorro se projeta sobre a perna d’O Louco para avisá-lo de ameaças. O próprio animal representa uma amizade com o limiar do mundo de cima e o de baixo. Há limites que não podem ser ultrapassados, e por mais louco que O Louco seja, ele também sabe disso.
Os Grandes Arcanos do Tarot de Marselha são compostos por 22 cartas, sendo 21 numeradas. Quando dispostas em ordem crescente, visualizamos nossa jornada e suas etapas, com seus desafios, reintegrações, alquimia, saltos de fé, mudanças, mortes e celebração. Não quer dizer que vamos viver tudo de forma linear - mas que há uma ordem, há.
O Louco potencializa todas as fases, sejam boas ou ruins. Com sua energia leve e pirracenta, nos acompanha em cada passo.
É melhor reintegrar esse arquétipo adequadamente. Nada pior do que um louco na sombra. Nesses casos, ele gosta de irromper de forma cruel e constrangedora, arrancando risos ou olhares tortos da plateia.
Nas palavras de Sallie Nichols, no livro “Jung e o Tarot”:
“O nosso louco interior nos empurra para a vida, onde a mente reflexiva pode ser super cautelosa. O que se afigura um precipício visto de longe pode revelar-se um simples bueirozinho quando enfocado com a volúpia do Louco. Sua energia varre tudo o que estiver à frente, levando outras criaturas de roldão como folhas impelidas por um vento forte. Sem a energia do Louco, todos seríamos meras cartas de jogar.”
É preciso muita coragem para se vestir da forma que O Louco se veste, para aceitar ser o bobo da corte, para seguir o caminho dando uma olhadinha para trás — ligando a sabedoria do futuro à inocência da infância — e carregando poucos pertences.
Lembro que, quando li sobre a carta, identifiquei esse arquétipo no livro “Knulp”, de Hermann Hesse. Quando devorei aquelas páginas do autor alemão pela primeira vez, durante o início da interminável quarentena, saí encantada com o personagem que dá nome ao livro. Afirmei que ele era meu primeiro — e até agora único — crush literário (Mr. Darcy nunca me convenceu).
Na época, escrevi o seguinte sobre a obra:
“Knulp é um andarilho educado, gracioso, livre, galanteador, desprendido, despreocupado, inteligente, amante da natureza e da filosofia, apaixonado pela vida, pela poesia, pela música e pela liberdade... Contenta-se em ser espectador e ouvinte da vida, rejeitando todos os padrões sociais impostos. É um hippie à frente do seu tempo, muito antes de movimentos contraculturais emergirem com força. Gosta de ouvir histórias, de aprender coisas novas com pessoas simples, de apreciar os detalhes.
Ao avançar pelas páginas, pensava em como eu queria trocar ideias com ele, ouvi-lo contar sobre o que viu, sobre os detalhes das andanças que ele mais ama, sobre quais vilarejos mais o acolheram, sobre os amigos que fez por toda parte, e queria ver o seu caderninho de anotações e seus recortes - espécies de Habseligkeiten, seus objetos favoritos e afetivos (esta é uma das minhas palavras favoritas na língua alemã).”
Habseligkeiten é uma palavra que designa aqueles objetivos afetivos que levamos numa caixinha diminuta. Não raro, andarilhos e pessoas que moram na rua também os carregam. Aqueles pertences possuem valor emocional.
Terminei minha curta análise da obra, em 2020, dizendo que minha meta era ser um pouco mais como Knulp. Levei quase quatro anos para isso.
Na busca pela reintegração desse arquétipo, é preciso queimar algumas estruturas, realizando alquimia. Sonhei, esta semana, que houve um incêndio no prédio em que moro há mais de uma década. Desesperada, temi pelos meus objetos afetivos - esses que também vimos milhares de pessoas dizendo que perderam nas enchentes do Rio Grande do Sul e que “não são só coisas”. Não são mesmo.
No cenário onírico, o incêndio não levou o mais importante. Meus objetos afetivos permaneceram intactos, mas uma estrutura se deslocou, tornando-se irreconhecível: o espaço interno que habito foi alterado definitivamente. Vejo O Louco me dando uma risadinha de canto, zombeteiro.
Às vezes, calha meter o louco para ser feliz, selecionando o que vale a pena incluir nessa trouxinha leve sobre o ombro. Não é preciso largar tudo e viajar o mundo para isso — mas ouvir a própria intuição e aceitar, aos olhos de alguns, parecer ridículo já conta.
Se você também é fã do louco, vai amar o livro "A Jornada da Louca", da Júlia Albertoni. "Inspirada nas cartas do baralho do Tarô, A Jornada da Louca nos convida a descobrir os territórios desconhecidos da nossa mente e do sonho que é viver". E a protagonista é ninguém menos do que o Louco na sua versão feminina ;)
Dei uma risadinha com o título, me encantei com o texto.