Já passou? - Artemísia #40
Aceitar a impermanência, tirar o pó de sombras, relembrar valores
Gosto de me fazer uma pergunta aparentemente inofensiva com frequência, só para dar aquele check na intuição:
“Se eu pudesse estar agora — neste exato momento — em qualquer outro lugar, fazendo qualquer outra coisa, eu iria?”
Se a resposta é “não”, sei que estou onde deveria estar. Há quase três semanas em Cali, na Colômbia, esse sentimento de não querer estar em outra parte é forte dentro de mim. Também foi assim em Iquitos, no Peru, e em todos os momentos desde que coloquei a mochila nas costas.
Mochilar é aceitar a impermanência em uma velocidade maior do que estamos acostumados. Ainda derrapo nessa tarefa, especialmente quando a experiência que vivo está mais próxima do fim do que do começo.
O hostel no qual voluntario, em Cali, se tornou uma segunda casa. Me sinto muito bem aqui, amparada, cuidada e bem-vinda. Também me encanta a cidade, as festas, a salsa, as pessoas com quem cruzo. O pacote todo colabora para que, desde que pisei os dois pés aqui, eu saiba que não quero estar em outra parte — pelo menos, por agora.
Terça-feira à noite, jogamos Uno no hostel. Minha amiga taiwanesa, depois de uns whiskys, soltou essa fala muito inspirada e afetuosa:
“Não quero sair desse hostel porque me sinto em casa, me sinto feliz. Vocês são como se fossem minha família. Acordo feliz, tomo café da manhã feliz, trabalho nas minhas coisas feliz, e mesmo que meu dia se resuma a ir no mercado comprar vegetais para cozinhar, faço isso feliz, cozinho feliz e como feliz. Estou muito confortável aqui.”
Minutos depois, ela recebeu um e-mail: a extensão do visto dela na Colômbia — burocracia com a qual ela lidava apreensiva há semanas — foi aprovada.
Os dias de voluntariado já estão mais próximos do final do que do começo, e a vida viajante te ensina que a impermanência é a regra. Você se conecta com as pessoas e, em alguns dias, já se despede. (Vide meu encontro com um inglês com quem dancei salsa e minha história de amor intensa de três dias em Lima.)
Sempre tive muita dificuldade com a impermanência. Não sei se é o ascendente em virgem, mas gostava de esquadrinhar planos minuciosos que a vida se encarregava de alterar fazendo troça. Eu queria que tudo durasse uma vida inteira — amores, pratos de comida, viagens, empregos. O “pra sempre” adquire um tom quase cruel, porque vai contra o fluxo.
Agora, não tenho escolha: em velocidades vertiginosas me despeço. A sensação do “já passou?” é agridoce, mas é o preço que se paga por estar viva.
Para ser honesta, já senti a sensação de não querer estar em outro lugar muitas vezes na minha vida. O que precisamos aceitar é a impermanência desse sentimento. Não vamos querer a mesma coisa a vida inteira.
Quando cofundei uma agência de comunicação especializada em agricultura familiar e agroecologia (inclusive, foi ao lado da Laís, que escreve uma newsletter sobre comida e afeto aqui no Substack), por muitos anos senti isso. Fui muito feliz e comecei a me conectar de verdade com a natureza naqueles anos. Até que não me realizei mais, porque vivi tudo o que precisava ali. O ciclo encerrou. Ponto.
Quando fui líder de uma equipe de comunicação, senti essa alegria e presença por meses. Até que fui obrigada, sob muita resistência interna, a admitir que minha alma queria outra coisa agora. Como assim vou largar um emprego aparentemente estável, que ainda me conferia certo status e me pagava bem? Levei quase um ano para pedir demissão.
Nada é permanente, nem a gente nesse mundo. Por que ainda não aceitamos que o entusiasmo também gosta de dançar em outras partes?
Dias depois de enviar uma edição sobre limpar sombras e armar ratoeiras, abracei outra sombra — um monstro cabeludo que pensei ter deixado na adolescência. Fiquei roxa de ciúme de um homem e coloquei à prova anos de autoestima construída em terapia, meditação, autoconhecimento e espiritualidade. Quando nos apaixonamos, o QI diminui pela metade, e não só confundimos fogo no rabo com amor como voltamos a pensamentos que, vejam só, pensamos que haviam passado.
Na noite do episódio, sonhei que voltei com meu ex-namorado e que morria de vergonha de contar às pessoas. Ou seja, retornei a padrões de relacionamento comigo mesma que sinto temor de revelar e hesito em integrar.
“Mas já não tinha passado?”, pergunto com muita tristeza.
“Acho que não, querida. Volta para dentro que temos mais trabalho para fazer”, é o que ouço do inconsciente.
Busco a vassoura com um beiço que quase chega no chão.
Nesta viagem, estabeleci três itens inegociáveis que são meus valores:
Presença: estou vivendo plenamente o que a vida me proporciona? Desfruto o agora como se fosse a única coisa possível de ser vivida?
Coragem: o que decido, faço e falo parte do medo ou da coragem de bancar quem sou?
Honestidade: sou honesta comigo e com os outros? Minhas ações condizem com o que minha alma deseja? Eu sei pedir o que quero?
Derrapei muito no episódio de ciúmes. Levantei com os joelhos roxos, envergonhada. Tive que relembrar meus valores, tomar ações condizentes — e colher os resultados.
O engraçado é que, enquanto eu queimava por dentro naquele episódio de ciúmes (do qual só eu e amigas souberam, claro), um caleño que conheci na mesma noite se aproximou para se despedir. Disse que o nome Cândida o lembrava uma fogueira, uma pessoa viva, que tinha muita paixão pela vida.
Só no dia seguinte me dei conta de como isso foi simbólico e bonito. Se eu alimentar meu fogo interno, o fogo externo me acende, e não me queima.
Envio essa edição me preparando para bailar salsa outra vez. A Colômbia me encanta porque deixa uma criança que ama dançar feliz. Amanhã é dia das crianças no Brasil, e sei que, se a minha versão mini está feliz, é porque a pergunta que abre esta edição aponta para uma sensação de paz que realiza essa niña.
Crianças aceitam a impermanência, sabem impor limites, vivem com presença e fluem. O choro porque já passou é parte da celebração do que vale a pena ser desfrutado. A melancolia também passa, e sempre, sempre, sempre haverá novas histórias para serem vividas.
Hora do chá
Esta edição chega com um dia de atraso porque, nessa de fluir pela vida, dizer mais “sim” do que “não” e abrir-se ao que deseja emergir, deixei para terminar o texto na quarta-feira à noite, véspera do envio rotineiro. No entanto, chegou um convite para bailar salsa. Eu tive que ir. E aí é uma mais uma história de viagem que merece outra edição.
Na quinta-feira, passei o dia em um povoado a uma hora de Cali, visitei uma fazenda de café em sistema agroflorestal e compartilhei o dia com um Couchsurfer. O sinal de internet era instável — mais um motivo que deixou esta newsletter em banho-maria.
O que estou praticando é viver com presença e enviar esta newsletter da mesma forma. Já são 40 edições, e isso é maluco e mágico. Obrigada por me lerem!
Não dá, logo que você posta algo eu já quero repostar inteiro 🤭 seus textos me deixam pensativa e com vontade de fazer mais uma viagem na América Latina o quanto antes
Desculpe, mas ri com respeito quando li "Quando nos apaixonamos, o QI diminui pela metade" haha. Eu concordo, é assim mesmo. Que bom que tudo se acertou e você não recusou o convite da salsa. :)