Minha mãe tem muitos vídeos meus dançando Xuxa na sala de casa. Ainda pequena, eu ligava nosso aparelho de som 3 em 1 — com espaço para vinil, CDs e fitas cassetes —, aumentava o volume ao máximo e iniciava um ritual que durava horas. Sacudia os cabelos, pulava, pulava, pulava (como uma cabrita, diria meu tio com afeto), mexia os braços e cantava alto fingindo que eu era a Xuxa. Não queria ser paquita: queria ser a Xuxa, a própria. Até o sotaque carioca da conterrânea gaúcha eu sonhava em imitar.
O amor pela Xuxa foi o primeiro laço de admiração por um artista que compartilhei com minha mãe, e talvez seja o único tão grande que dividimos por alguém que só conhecemos por telas. Amo a Xuxa até hoje. O que ela encarna como arquétipo foi uma medicina para a minha criança. Ouvi-la ainda é transporte instantâneo para uma dança que, agora, sei que era ritualística.
Eu não imitava coreografias. Eu criava as minhas, dançava loucamente, expressava uma criatividade e uma energia inesgotáveis, capazes de existir somente em uma criança sem medo nenhum do ridículo. Agradeço que nenhum desses vídeos tenha vazado, porque devem ser no nível “meu nome é Júlia” (meme pelo qual nutro carinho empático, pois quem nunca foi a menina no quarto fingindo ser uma pop star?).
Se escuto canções da Rainha dos Baixinhos no Spotify, meus olhos ficam marejados. Volto para aquela criança incansável, espontânea, autêntica. Não havia olhos externos julgando os passos tresloucados e livres que eu executava na sala de casa, de frente para o aparelho de som e usando todos os membros do corpo. Havia expressão. Pura e simples vazão de quem se é.
Intuitivamente, eu realizei ali, antes dos sete anos, os meus primeiros rituais mágicos.
A dança é o primeiro ritual mágico da humanidade. Todas as nossas narrativas, palavras, ideias, desejos e impulsos estão impressos no território primevo e fisicamente permanente que habitamos: o corpo. É por meio da dança que o não dizível ganha forma. É fluindo em movimentos corporais que o abstrato torna-se palpável. Todas as obras de arte nascem da dança. A palavra nasce da dança. E a memória é reescrita, continuamente, como uma dança. O Universo é todo uma dança. Contração, expansão, mistério.
No livro “Grandmother's Secrets: The Ancient Rituals and Healing Power of Belly Dancing”, escrito pela bailarina iraquiana Rosina-Fawzia al-Rawi, a autora afirma que os povos primitivos (e ela mesma conceitua que primitivo não é utilizado com significado pejorativo, mas de antigos) se viam como “encarnações dos filhos da Grande Mãe; para eles, não havia separação entre o corpo e o mundo, dentro e fora, esta vida e a próxima: todas as coisas estão indissoluvelmente unidas”. (Inclusive, cheguei a este livro por meio dos textos da Camila Bindel, da newsletter Santuário, que tem publicado edições lindas sobre dança e feminino.)
Segundo Rosina-Fawzia, uma característica primordial dos cultos das sociedades matriarcais era a dança.
“A dança era mais do que um mero surto emocional passageiro, mais até do que uma oração expressiva: na verdade, dançar era a prática mágica mais importante de todas. Dançar é a forma mais antiga e elementar de expressão espiritual; é a magia em forma de ritual dançado. Todas as outras formas de expressão que hoje conhecemos pelo nome de Arte se desenvolveram a partir da dança.”
A dança desentranha, é o Sagrado manifesto na matéria. Todos os povos que mantêm respeito por cultos ritualísticos sabem o que a etimologia define perfeitamente:
“A palavra em árabe para dança, raqs, também significa: ‘Fazer o coração estremecer e sacudir’.”
Escrever é corporal. Envolve um embrulho no estômago, uma ranhura na garganta, uma coceira na ponta dos dedos, um coração palpitante; uma cabeça chamuscando, saindo fumaça; um fígado, um rim, uma bexiga — e, sobretudo, escrever envolve o quadril: o centro do movimento corporal. Escrever é corpóreo, é um território que habitamos, mas que começa muito, muito antes que o papel — ou a tela — registre o que nossos órgãos, tecidos, músculos e ossos — ah, os ossos recolhidos por La Que Sabe! — evocam.
Escrever é como dançar sem coreografia prévia. Você segue o ritmo, tropeça, volta, faz de novo, até que termina com algo surpreendente nas mãos. Os movimentos não são inéditos; é a combinação e a recombinação, o ritmo, o visceral que torna o resultado único e autêntico.
Quando dançava livremente bem pequena, eu entrava em estado de meditação e também do que Jung chama de imaginação ativa: reconfigurava memórias, criava meus mundos, habitava meu corpo ao mesmo tempo que o transcendia — e transbordava.
Mexer os quadris foi o que culminou no meu amor pela escrita.
Em entrevista este mês ao jornal rascunho, a escritora espanhola Rosa Montero diz que a vida toda escrevemos um romance só, que é a obra da nossa vida.
“Quando digo que as pessoas são romancistas da própria história, quero dizer que a vida é narração. O ser humano é, sobretudo, palavras. Palavras em busca de sentido. E dizia Epíteto que o que afeta o ser humano não é o que aconteceu, mas o que se conta daquilo que aconteceu. Ou seja, essa narração que fazemos da nossa vida é a vida que vivemos.”
Na abertura do livro “A Louca da Casa”, Montero afirma que as memórias também são narração. Quando ela coteja episódios da infância com a irmã, por exemplo, parece que as duas foram criadas por famílias diferentes. Sinto o mesmo. Como escolhemos contar o que nos ocorreu? De que parte do corpo saem as narrativas? Onde ainda estão impressos os medos, os traumas, os potenciais não materializados?
Conheci um suiço apaixonado pelo Brasil em Cali, na Colômbia. Ele saiu em luto da cidade, assim como eu: Nico não queria partir, porque soava como o rompimento de uma descoberta que alterou para sempre a vida dele. Quando nos reencontramos na região cafeeira colombiana, ele me confessou: “eu me sentia eu em Cali. Podia dançar sem medo de ser julgado. Ninguém ligava se eu dançava mal”. No país de origem, jamais poderia fazer isso. Há memórias traumáticas de infância que ele curou nos trópicos, aprendendo a bailar salsa sem vergonha nenhuma. O Nico agora sonha em passar quatro meses por ano em Cali, quatro meses no Rio de Janeiro e somente o verão europeu em Zurique. Não é um plano ruim. Povos que dançam livremente são mais felizes.
Então eu entendi que por isso Cali foi mágica: porque eu dançava alegre, sem medo do julgamento. Todos os dias. Igualzinha àquela menina de sete anos na frente do aparelho de som.
Antes de falar, dançamos.
Antes de formar frases complexas, dançamos.
Antes de conseguir elaborar traumas, dançamos.
Antes de sentar no computador para escrever esta newsletter, dancei enquanto cozinhava (obrigada, Bad Bunny, por ter materializado DtMF).
A fruição está no corpo, não está na mente. A Arte toca e transcende porque fica impressa no corpo e porque nos dá, por consequência, a chance de alterar a forma de ver, de ressignificar narrativas, escolher palavras, partir para a ação consciente.
Em relance, parece que um ato tão vinculado à racionalidade quanto a arte da escrita não parta de algo instintivo, corpóreo. Porém, mesmo quando sofremos de bloqueios criativos, de agendas bagunçadas, de crises na autoestima e de síndrome da impostora, a única medicina que pode sanar é voltar ao corpo. Escutar o que está enguiçado na coluna, no útero, no peito, nos tendões. Soltar o quadril. O chakra sexual está ligado à criatividade, à fruição e a uma criança que pula na sala sem medo do ridículo.
É o movimento que nos permite criar a obra de uma vida e ressignificar, constantemente, as palavras que escolhemos para narrar a própria dança.
Hora do chá
Ando mergulhada em livros que unem dança, espiritualidade, escrita e ativismo. Acredito que essa combinação tem crescido em sentido para mim e me auxiliado a navegar transformações bem grandes aqui dentro e que já estão se manifestando do lado de fora. Há projetos novos sendo gestados — e certamente essas investigações vão refletir no conteúdo que compartilho na Artemísia.
Lembro que agora temos um plano de assinatura pago para quem deseja apoiar a escrita dos meus textos e ter acesso a conteúdos exclusivos. Semana passada, saiu o primeiro texto somente para assinantes — e quando você faz o upgrade a um plano pago, automaticamente acessa todos os arquivos. :)
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Aos poucos, investigo e gesto nossa comunidade de troca sobre sonhos, símbolos e viagens. O movimento é medicina, né?
Até semana que vem!
Que delícia de texto, Cândida!
Xuxa como um arquétipo, amei kkk