A cumplicidade - Artemísia #53
De forma literal, gozei a reintegração da minha energia sexual na Colômbia
Falar de sexo abertamente ainda é tabu. Podemos propagar em memes o quanto nos sentimos livres, assistir às temporadas de Sex and The City e exaltar a Samantha, criticar (com razão) o olhar enviesado do feminismo liberal e contar, na mesa de bar, que damos para muitos caras. O tabu não deixa de existir porque falamos sobre as coisas ou porque repetimos piadas com aparente naturalidade. Ele segue camuflado em uma névoa que impede muitas mulheres, por diversos motivos, de usufruírem de uma sexualidade plena, leve, de habitar um corpo e uma pele de forma prazerosa.
Sexo está para além da contagem de parceiros sexuais; está em uma mulher ser capaz de gozar livremente sua energia sexual — isto é, permitir-se viver a vida, expressar sua criatividade, tomar suas próprias decisões e decidir quantos e quais parceiros e/ou parceiras escolhe.
Anitta pode cantar o que quiser: não é só sobre ter um popozão, saber pagar boquete e pegar mais de cem. Também pode ser, mas não necessariamente é (e olha que eu adoro cantar “Capa de Revista” e queria muito rebolar como ela). O arquétipo afrodisíaco não liga para padrões, números, estética, performance. Ele se conecta à fruição plena.
Há coisas que levei mais de uma década de vida sexual ativa para entender e integrar. Aos 30, o tique-taque do relógio, a maturidade e um lindo botãozinho de “foda-se” ajudaram a desbloquear alguns traumas, reaprender caminhos e permitir, a mim mesma, gozar a vida plenamente para além do que internalizei que era o esperado. Perguntar “o que eu desejo comer de verdade?” me abriu um cardápio apetitoso, mas tive que preparar tudo à mão; não estava nada pronto no bufê. A alquimia não ocorreu em 24 horas. Houve noites escuras, muitos meses frustrada, doença psicossomática, escrita livre em linhas muito tortas. Mas o caminho compensa.
Então, em mais uma das sincronicidades mágicas do Universo e das histórias que, se eu não tivesse vivido, diria que são ficcionais, o portal 12/12 veio com um presente. Pela primeira vez na minha vida, gozei ao mesmo tempo que um homem — e com penetração. Foi o marco de voltar a sentir apreço genuíno pelo ato sexual: um prazer sem culpa, sem amarras, sem promessas, mas com fluxo, muito fluxo espiritual-corporal e respeito. Respeito por mim, em primeiro lugar.
Na beira do rio de um sítio na região cafeeira colombiana, em meio a árvores e ao barulho calmo da água correndo, eu gozei a integração entre partes minhas que possibilitaram aquele realinhamento com o que sempre foi meu. Olhando a feição do meu parceiro no momento do ápice, eu mal acreditei. Foi tão inédito, inesperado — e bonito — que só entendi a dimensão daquilo dias depois.
Quantas de nós não internalizamos que sexo se mistura com amor, no sentido de compromisso, relacionamento e expectativas externas? Quantas ainda têm receio de viver plenamente os desejos do corpo porque a cabeça entra com mil “poréns” na equação? É fácil que esperemos algo a mais do outro lado, seja que tipo de compromisso — e ainda reproduzimos, sem querer, a dicotomia entre a puta e a santa. Cantar aos quatro ventos que se é puta não ajuda: a alquimia não está só no uso da voz, mas em uma integração interior que é sentida e, mais do que isso, vivida todos os dias com a própria permissão. No fundo, nem o chapéu de puta nem o de santa servem. O ideal é a régua no equilíbrio, que aponta para a mulher livre, cúmplice de si mesma, comprometida consigo.
No livro “Mujer Sexual, Mujer que Brilla”, de Carolina Caballero Sánchez (que já citei em outra edição em que começo a abordar essa integração da sexualidade saudável), a autora escreve sobre a autorresponsabilidade ao nos relacionarmos sexualmente.
“[...] el sexo es un intercambio importante que debe tratarse de manera muy consciente. Conlleva responsabilidades irrefutables; el gran abismo de esta postura versus lo que se aprende socioculturalmente es que esta responsabilidad no es con un otro afuera, sino con una misma.”
Nunca me esqueço de um pesquisador bambambã com quem saí algumas vezes. Ele se esforçava durante as primeiras transas — e transou bem mesmo, sabe? Foi bom, queria impressionar. Só que eu, apaixonada por outro cara, contava as listras do teto durante o ato, cuidando para não deixar a imaginação voar tanto a ponto de chamá-lo pelo nome errado. Eu não estava conectada, e nem era com ele. Era comigo. Aquele sexo ia ser bom como? Eu nem queria estar lá.
Meu campo inconsciente era de repulsão, então eu acumulava experiências duvidosas como mulher cisgênero e hétero. Testei bastante, mas transei tão desconectada várias vezes que meu corpo desenvolveu uma doença psicossomática durante a pandemia. Como quase todo mundo no período da Covid, pirei, e ali passei mais de um ano sem sexo. Eu não me permitia sentir prazer com nada, nada, nada. Era um acumulado de culpa e tristeza exacerbado pela quarentena infinita. Naquele período forçado dentro do casulo, fui obrigada a olhar para essas feridas. Contudo, só fui entender que a conexão sexual começa comigo mesma quando saí de mochila nas costas. Talvez porque eu estivesse atendendo profundamente aos meus desejos, sacrificando narrativas que não me serviam mais.
Cheguei no Peru, em julho, e me apaixonei no segundo dia. Viajei 26 horas em um ônibus para rever aquele homem, um skatista limenho que me proferiu as coisas mais bonitas que alguém já me disse. Compartilhamos três dias incríveis dos quais não me arrependo. (Escrevi sobre essa história aqui, em outra edição da newsletter.)
Na Colômbia, em três meses e meio as histórias foram mais numerosas e efêmeras. Encerraram, de forma circular, com o episódio que narrei no início desta edição. Para chegar àquele lugar, não passei mais de um dia sentada no ônibus. Não fiz loucuras. Igual ao rio que corre no sítio do moço, um biólogo colombiano encantador e suave que já morou no Brasil, eu só fluí e disse “sim” aos convites, sem expectativa nenhuma. O caminho foi mais longo, em anos anteriores, dentro de mim. Isso sim.
A lista de homens com quem fiz sexo não é extensa. Tem o mesmo número da minha amiga mexicana, com quem discuti o tema em Bogotá, uma noite antes de voltar ao Brasil. Ela, mística, ainda escreve no bloco do celular o signo de todos os caras. Eu, bem mais modesta, coloco somente o nome. Quero lembrar de todos — e lembro mesmo. Sobre cada um tenho histórias para contar, sejam risíveis, engraçadas ou bonitas.
Brinco que já escrevi uns quantos esquetes de sitcoms na minha cabeça com as cenas que vivi durante transas e dates. Há diálogos que beiram o absurdo e que oferecem ótimo entretenimento aos meus amigos na mesa de bar. Mas aí que tá: cansei de acumular narrativas tragicômicas e de falar mal de homens héteros ou bissexuais. O estoque de ideias para roteiros de comédia estava bom, não precisava mais viver outros para anotar fervorosamente nos diários maldizendo o azar que me fazia acumular esses parceiros.
Eu quero a mágica. Quero transas incríveis. Quero o orgasmo e a preocupação real com meu prazer. Antes de isso acontecer do lado de fora, porém, precisei viver tudo isso do lado de dentro, priorizando a fruição da minha Afrodite antes do sexo. Precisei, também, me permitir sentir prazer. Estar presente, conectada, pensando em mim — e aí, sim, levar para o sexo. (Os homens já naturalmente pensam bastante neles durante o ato, não se preocupem.)
Então o Universo entregou experiências afrodisíacas na minha viagem pelo Peru e pela Colômbia, depois de o meu último date de Tinder e sexo casual porto-alegrense ter sido uma das histórias mais bizarras que um dia vão compor o tal roteiro. (À medida que escrevo este texto, me convenço que algumas coisas eu realmente preciso transformar numa peça teatral.)
Tudo o que foi necessário para a alquimia fechar de forma circular na Colômbia foram 10 minutos de conversa no café da manhã de um hostel em que eu nem era para estar. Conheci esse moço, trocamos contatos, e o escrevi só três meses depois, saindo de Cali a contragosto. De forma muito leve, tudo se consumou na minha última semana no país. A vida é mágica. Não me canso de repetir.
A energia sexual está ligada à permissão de uma vida prazerosa. Cansei de ver mulheres como eu que, mesmo do seu privilégio hétero e cisgênero, estão desconectadas do próprio desejo. Colecionamos histórias tragicômicas com homens também perdidos porque não sabemos sequer impor limites a nós mesmas ou nos ouvirmos. Rolamos telas e deslizamos aplicativos para a direita e para a esquerda, na esperança de que, mesmo sem olhar pra dentro, vamos encontrar o “the one” lá fora — uma mentira. Achamos que liberdade é transar muito — e pode ser, vejam bem, pode ser. Mas liberdade mesmo, de verdade, é se permitir o prazer do corpo, do espírito, da vida de forma genuína, quando tudo é construído para que nunca acessemos esse poder — embora, de forma completamente contraditória, te vendam o tempo inteiro a possibilidade de encontrá-lo e supri-lo na falta.
Não escutamos Afrodite, porque a procuramos em padrões e performance. Ela não está lá. Ela está no corpo que temos, nos recursos que temos, na forma que temos. Ela está em um orgasmo sincronizado com a energia complementar — que sempre, sempre, sempre esteve dentro da gente.
O diálogo abaixo ocorreu mais de uma vez entre os dois dias que eu e C. dividimos conversando em meio à natureza, em volta da fogueira admirando a Lua Crescente, e na beira do rio que corre a alguns metros do sítio onde ele mora:
“Obrigado por aceitar o meu convite. Que bom que você veio.”
“É, que bom que eu vim!”
Era assim mesmo: suave. No momento em que entrei no carro dele, quando ele veio me buscar na rodoviária, me senti relaxada, me senti eu. Não tive medo, porque a intuição deu sinal verde. Dois dias depois, nos vimos de novo em outra cidade, onde colhemos café na propriedade dos tios dele. Minha experiência colombiana terminou como eu queria, mas foi entregue de forma mil vezes melhor do que imaginei.
Sim, que bom que eu fui. Agradeço por ter aceitado o convite dele e por, intuitivamente, termos nos conectado. E que bom, antes de tudo, estar comigo, porque ancorar em mim que permitiu a conexão — eterna, à sua maneira — daqueles dias. Que bom que vivi tudo o que vivi antes na Colômbia para saber apreciar que aquilo lá, no final dessa primeira viagem pelo país sul-americano, foi diferente.
Não sei se há continuação dessa história, o que tampouco me preocupa. Eu estava presente, ele também. Só até aí já valeu. Desenvolvemos uma cumplicidade que só foi possível porque, antes de brilhar do lado de fora, ocorreu do lado de dentro de cada um de nós. O que vier depois é somente a continuação do fluxo.
Acima de tudo, desejo permanecer minha cúmplice, porque é isso que seguirá abrindo espaço para que outras experiências — que estão logo ali à frente, me esperando na curva do rio — sigam prazerosas e honrando minha Afrodite.
La complicidad es tanta
Que nuestras vibraciones se complementan
Lo que tienes me hace falta
Y lo que tengo te hace ser más completa
La afinidad es tanta
Miro a tus ojos y ya se lo que piensas
Te quiero por que eres tantas
Cositas bellas que me hacen creer que soy
Soy la levadura que te hace crecer el corazón
Y tú la vitamina que me hace falta
Soy ese rocío que se posa en tú vegetación
Y tú esa tierra fértil que está escasa
(Trecho da canção “La Complicidad”, de Perotá Chingó, que pode ser ouvida como uma ode ao seu Animus ou à sua Anima.)
Hora do Chá
Sábado, dia 11/01, esta newsletter completa um ano. Na primeira Lua Nova de 2024, ela foi inaugurada. Agradeço, de coração, a todas as pessoas que a leem, comentam, divulgam, compartilham (e, vejam só!, até a traduzem para o espanhol. Temos leitoras argentinas e colombianas, o que me honra muito!).
Colocar a Artemísia no mundo foi um dos passos que me permitiu a reintegração da minha vida criativa — o que também abriu espaço para a história que conto nesta edição. Tudo é sistêmico e interligado, e uma mulher jamais vai se arrepender de dizer “sim” a seu entusiasmo.
Recebi a sugestão de uma leitora porto-alegrense muito querida de organizar um encontro presencial em Porto Alegre em janeiro e fiquei bastante empolgada com a possibilidade de trocarmos ideias pessoalmente e nos conhecermos. Se há leitoras na capital gaúcha que gostariam, deem um alô! Só fico mais este mês na cidade. Depois, as aventuras continuam :)
Cada vez que me llega un mail con una nueva historia / reflexión, vibro de alegría. Y cada vez que te leo, se me mueven muchas cosas dentro. Espero saber que más pronto que tarde, tendremos el libro Artemisia, lo necesito. Abrazos de una argentina usando el botón de traducción cada vez jajaja :)
Parabéns pelo aniversário cósmico da sua News! Adoro acompanhar as suas aventuras e já estou curiosa para saber das próximas. Essa edição mexeu bastante comigo. Acabei de ler "Tudo é rio", da Carla Madeira e de alguma forma senti esse antagonismo da santa e da puta nas personagens principais, que sincronicamente se conectam e são cúmplices de algo maior. Temos todas essas versões dentro de nós, mas por infinitas questões, deixamos algumas presas em uma jaula. Fico feliz em saber que libertou a deusa Afrodite que habita em você. E que nós mulheres possamos vivenciar os nossos prazeres com leveza e sem culpa 🫀