Diga-me por quem te apaixonas - Artemísia #26
…que te direi o que precisa ser reintegrado internamente
“Agora para um pouco e veja como você está descrevendo a si mesma”.
Foi com esse tapa na cara bem suave, típico de uma sessão de terapia, que uma amiga minha descobriu que, ao procurar se relacionar com outros homens, queria se apaixonar por si mesma — ou por um ideal que havia construído da própria imagem.
Incessantemente, ela buscava a confirmação do próprio valor quando imaginava homens (aparentemente) inatingíveis caidinhos por ela. Ou quando projetava sua energia masculina em outras pessoas, quando tudo o que precisava e queria era reintegrar partes da própria psique.
A essa altura, talvez caiba revelar que a amiga do texto era eu. Iniciei este escrito assim, terceirizando o episódio, um pouco por vergonha da vulnerabilidade passional e risível de paixões malsucedidas. Meio como a plateia do Altas Horas fazendo perguntas sobre sexo à Laura Müller, transferi à outra pessoa a responsabilidade sobre uma experiência esquisita, mas reveladora. Pensei em deixar na conta dessa figura etérea chamada “uma amiga” e me proteger com um escudo.
Se revelo o fato é porque a discussão aqui é sobre Animus e Anima, figuras complementares da nossa psique, assim nomeadas por Jung. E quem nunca se apaixonou por uma pessoa idealizada, que atire a primeira flecha.
Agora, vamos destrinchar o que interessa.
Animus e Anima são energias complementares da nossa psique, segundo a psicologia junguiana. Esse conceito não tem a ver com sexo nem gênero, mas deriva de uma lei hermética que fala da dualidade do feminino e do masculino, do positivo e do negativo, do Sol e da Lua, de Luz e Sombra. Essas figuras da psique aparecem, inclusive, em pessoas não-binárias, trans e de qualquer orientação sexual. Geralmente, porém, homens projetam sua Anima — energia feminina — em outras mulheres, enquanto mulheres projetam seu Animus — energia masculina — em outros homens. Mas, claro, tudo é vivo e há uma infinidade de variações.
Em sonhos, o Animus e a Anima, nossos opostos complementares, aparecem encarnados nas pessoas pelas quais nos apaixonamos e que colocamos em um pedestal. Sabe aquela paixão tórrida ou aquela noite de amor que você vive no ambiente onírico? É com o seu oposto complementar. Isso são pistas do que precisamos integrar em nós mesmos, muito mais do que um desejo de consumação carnal na realidade (embora ok, talvez seja também um desejo físico e tudo bem você querer consumá-lo).
Se a paixão costuma nascer de uma idealização narcísica, de um espelho que nos é colocado na frente da cara de forma não solicitada, o Amor é o que fica depois que retiramos esse véu da ilusão apaixonada e narcísica, quando não nos reconhecemos mais no Outro, mas encaramos nossas próprias complexidades — e a complexidade alheia, portanto. O Amor, assim em maiúscula, é o que fica depois do inevitável desvanecimento da projeção inicial, quando convidamos o Animus e a Anima a descerem do pedestal no qual colocamos a pessoa amada e integramos aquelas partes em nós.
Tive toda uma fase da minha vida em que eu nutria crushs involuntários por homens misteriosos, que pareciam abrigar uma dor profunda bem escondidinha e não expressada. Sabe aqueles que se paravam no canto da festa com olhos de cachorro abandonado, barba por fazer, cabelo desgrenhado, um copo de cerveja na mão, claramente desajustados e não pertencentes ao ambiente? Esses mesmos.
Hoje, quando uma amiga sugere apresentar um cara para mim ou quando dou um like na roleta-russa do Tinder, a primeira coisa que penso é: “Será que ele é feliz?” E torço para que seja.
Faz um tempo que decidi que já deu de homem mal-resolvido. Acho que é porque eu mesma me resolvi em muitos aspectos, e não quero encontrar um espelho rachado para olhar para os meus traumas. Embora, é claro, o Inconsciente pregue peças — não para fazer troça, mas para que a gente encaixe elas na trama da vida, nos aproximando ainda mais do processo que Jung chama de Individuação: ou seja, de nos tornarmos verdadeiramente nós mesmos.
Às vezes, só olhamos para dentro quando o problema é escancarado do lado de fora.
Em um sonho durante a pandemia, quando comecei o mergulho na simbologia onírica, comunguei, em uma missa improvisada na calçada da minha cidade natal, ao lado do meu Animus, naquele momento projetado em um cantor alemão que incorporava todas as características que minha energia masculina ansiava em externar. Eu o descrevia como sensível, organizado, bem-sucedido, talentoso, articulado, espirituoso, engraçado, engajado em causas ambientais, compositor (ou seja, publicamente vulnerável)…
“Comunga essa energia, Cândida”, o sonho me disse. Demorei bastante para conseguir, e ainda tateio nessa reintegração saudável da minha energia masculina — como já contei nesta edição da newsletter.
Depois de tanto escrutínio interior, hoje eu continuo achando aquele cara incrível — mas mais… humano. Ele finalmente se tornou, aos meus olhos, aquilo que verdadeiramente é: uma pessoa normal.
Quem nunca se apaixonou de forma completamente inusitada e pensou: “Mas o que será que essa pessoa tem de tão especial?”
Bom, a resposta é: ela tem exatamente o que você precisa naquele momento.
Isso não significa, óbvio, que não exista Amor, que depois de retirada a projeção inicial uma relação a dois (ou seja lá em qual formato) não possa vingar e durar anos — quiçá a vida inteira, sendo reinventada, reimaginada em conjunto, com disposição, respeito e afeto. Este texto é sobre tomada de consciência. No momento em que entendemos o papel do Outro na nossa vida e o colocamos no local que deve ocupar, é possível estar inteiro para uma construção sólida, erguendo um prédio com vigas firmes.
Até Chico Buarque já viu sua Anima em sonho, como ele canta na música “A Moça do Sonho”.
Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar: quem és?
Mas fraquejou a vozSem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó[...]
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu
(Ah, sim, essas figuras internas também gostam de desaparecer, virar outras pessoas na hora de consumar algo e todo tipo de peripécia fantástica nos cenários onirícos.)
Histórias de amor, por mais efêmeras e escorregadias, abrem portais. Ano passado, um homem encarnado no arquétipo do deus grego de Hermes me mostrou um mundo de possibilidades, colocou um espelho em partes que eu nem sabia que carregava em mim e me auxiliou em uma transição interna. De repente, me enxerguei de formas diferentes — e o caminho da individuação se expandiu. Hermes é o deus grego da comunicação; é veloz, carismático, malemolente, confiante, ótimo improvisador. Na figura mitológica, é representado com asas nos pés pela agilidade de transitar entre mundos e ser o guardião do limiar entre a superfície e o profundo.
Em alguns dias, vou dar um salto de fé inspirada nele, segurando na mão do meu próprio Hermes — esse que mora dentro de mim, que eu retirei da projeção e das sombras.
Por isso, olhe bem por quem você se apaixona: há pistas importantes do que precisa ser reintegrado e curado dentro de você.
Esse ano eu deixei meus pré-conceitos de lado e comecei a estudar o tema de energia feminina e masculina; um mundo se abriu e obtive muitas respostas para perguntas que habitavam meu inconsciente.
Teu texto tem a beleza e o incômodo da vulnerabilidade - eu amo 🤎✨
como escreves bem! <3 adorei esse texto!