Percorro as ruas de Cali, a cidade que mais amei na minha vida até hoje. Não sei o porquê, mas no sonho quero fugir. Encontro amigos pelo caminho, alcanço uma escada misteriosa e desço, desço, desço, me desvencilhando de uma pessoa em particular. Não dou atenção ao que ela me fala e, diante do meu desdém, ela vai embora. Encontro um gazebo no meio da mata, perfeito para me isolar. Quero descansar, ficar sozinha. O chão do espaço é de terra, muito irregular. Estendo minha canga no piso e começo a chorar muito, muito, muito. Surge uma mulher desconhecida à frente, vestida de branco. Ela me mostra uma maca, pedindo que eu deite.
Imediatamente, vejo um quadro em movimento, como se fosse uma obra de arte exposta na sala da minha casa: uma serpente verde imponente, de boca aberta e olhos vivos, engole uma cobra preta.
Acordo com um choro preso no meu quarto em Salvador. De onde veio esse desejo de verter lágrimas? Eu não estava tão feliz?
Tenho uns quatro textos inacabados para a Artemísia, uma lista de tantos outros que desejo redigir, e esta semana preciso confessar o auge: escrevi um inteirinho, perfeito para ser enviado na sexta-feira 13, e fiquei com vergonha de dividi-lo com o mundo. Ou melhor, não é bem vergonha. É que sinto não ser a hora de apertar o botão “publicar” naquele relato. O conteúdo alquimizado naquela escrita ainda é gestado, internalizado, acessado por partes que não compreendo muito bem também.
Troco de pele, igual a uma serpente — esse símbolo tão potente, incompreendido e mal-interpretado em uma sociedade que atrofiou o feminino. A serpente cura não por meio da fuga da dor, mas mergulhando nela, transformando o veneno em antídoto.
“Mergulha, Cândida, mergulha na água salgada”, é o que imagino a mulher do sonho me dizer diante da relutância que apresento em chorar.
“Logo eu, que evito molhar os cabelos dentro do mar”, respondo.
Starhawk é minha escritora-bruxa favorita. Leio “Dreaming the Dark”, obra em que ela propõe saídas diante de crises sistêmicas. Publicado pela primeira vez em 1982, continua atual mais de quatro décadas depois. A bruxa estadunidense tem meu respeito porque já foi presa dezenas de vezes por ir a protestos ecofeministas e entende que magia é atuar na realidade concreta, porque estamos interconectados enquanto comunidade.
Ela define magia como “a capacidade de alterar a consciência de acordo com a própria vontade”. Ainda assim, como alguém vai executar magia se precisa pensar em como vai pagar o aluguel ou o almoço?
O livro que leio agora nasceu da inquietação da autora com as crises sistêmicas da década de 1980. Como habitar a incerteza com mais empatia? Tentando responder a essa pergunta, nasceu o livro. Para Starhawk, a escuridão é inevitável, uma manifestação concreta da imanência da Deusa. Ao mesmo tempo, é o prenúncio de uma nova realidade.
“A escuridão: tudo aquilo que tememos, tudo o que não queremos ver — medo, raiva, sexo, luto, morte, o desconhecido.
O que cria escuridão: mudança.
A escuridão aveludada: pele macia na noite, encostar carne com carne, o toque, a alegria, a mortalidade.
A escuridão geradora de Hécate: sementes são plantadas sob a terra, o útero é escuro, e a própria vida renasce em lugares ocultos.”
(Dreaming the Dark, Starwahk. Tradução minha.)
Para além do sonho do gazebo, meus cenários oníricos têm sido permeados pelo oceano, por águas que invadem calçadas e por fugas.
Fujo de sentir o quê?
Tenho suspeitas, e uma delas foi traduzida pela Yna, na última edição da newsletter Desejante: tenho medo de sentir tristeza e não voltar mais. Eu sei que sempre voltei, mas contabilizo dois casos de depressão diagnosticada e só quem já habitou esse terreno denso, sem forma e sem esperança sabe o desespero de achar que não há mais caminho de retorno.
Neste caso, não é nem tristeza. É um luto, uma troca de pele. Estou em um momento-entre: não sou mais quem era, mas ainda não sou totalmente quem posso ser. Compreendo coisas profundas sobre mim, relembro partes adormecidas, alquimizo antigas formas de me relacionar, de amar, de habitar o mundo e minhas emoções. Navego minha mediunidade, vejam só! Também gesto, do caldeirão do renascimento uterino que carrego, um novo projeto profissional que me orgulha muito. Preciso de silêncio interno para processar tudo. Logo sei que vou emergir na nova pele. Só não ainda.
Os textos da Artemísia acompanham a oscilação criativa de não saber como, neste momento, se reapresentar. Mas aceito. Tudo é parte de uma vivência criativa e autêntica.
Starhawk, em “Dreaming the Dark”, também alerta que, para habitar o mundo com mais compaixão e imaginar outros futuros, precisamos mergulhar no desconhecido, no luto, na raiva, na angústia. Temos ojeriza ao que é escuro — o que se reflete, de forma muito óbvia, no racismo com pessoas pretas, povos indígenas e quilombolas. (Assim em cima como embaixo, já postula a filosofia hermética.) Rechaçamos tudo o que não é claro, alvo. Hécate é escanteada — no entanto, guarda tanto saber sobre novos caminhos.
Para reimaginar outras histórias, é seguro aninhar sentimentos mais densos, turvos, dormir enrolada neles, envolta em lágrimas de vez em quando. Nada anula a alegria. Pode não parecer, mas todos os sentimentos coexistem no equilíbrio dos polos. Sol e Lua, Yin e Yang, masculino e feminino. O contrário de alegria não é tristeza, é falta de esperança. As lágrimas têm um poder curador por si só. Aninho quem fui e penso: “como é corajosa essa mulher que nos trouxe até aqui”.
Enquanto redigia este texto em um sábado de manhã chuvoso, menstruei. Entro no mar com receio e já sinto as ondas batendo nos joelhos. É noite, mas estou pronta para mergulhar e molhar os cabelos. Pelo menos a água na Bahia é quente.
Hora do Chá
Esta semana, tirei mais um rosto do Substack das telas e trouxe à vida real: conheci a Lu Marinho, do Cartas de Valor, em Itacaré. Fomos tomar café e pegamos uma praia. É tão especial conhecer pessoalmente pessoas incríveis! Se ainda não são leitores da newsletter dela, recomendo muito para se inspirarem :)
A Lua Cheia em Escorpião foi intensa por aqui. Estou mergulhada na minha escuridão, certa de que, em breve, verei luz de novo. Vida-morte-vida e seus processos.
Relembro que a Artemísia tem uma versão paga para quem quiser receber textos exclusivos sobre símbolos, interpretação de sonhos e viagens para dentro e para fora. Assinaturas em grupo também contam com 10% de desconto.
Adorei o texto! Acredito que o mais bonito seja você encontrar maneiras de respeitar seu tempo (vais saber a hora de compartilhar o tal texto), seus questionamentos, não dar espaço para a falta de esperança, ainda que eventualmente surja o medo da "tristeza que não vai embora". Confie em você, sempre <3
Sua news é definitivamente minha favorita por aqui, principalmente por trazer o mundo simbólico.
Também tive um sonho iniciático com uma serpente, onde ela picava minhas gatas, eu me desesperava achando que elas morreriam, e... na verdade, elas não só sobreviveram, como ficaram MAIS FORTES.
Como eu amo a força evocativa e transformadora do símbolo!