Nesta edição da Artemísia, revisito este texto que publiquei no Medium em novembro de 2023. Modifiquei bastante a parte final e gostei muito do exercício de reencontrar significados a um escrito de um ano e meio atrás. :)
1. A esperança arranhada
Era fevereiro, mas fazia frio. Em uma noite estrelada numa cidade pequena do extremo austral, ele tentou me mostrar a constelação de Sagitário no céu.
“Aquelas três estrelas ali do lado direito, tá vendo? Elas formam a ponta do arco.”
“Aham…”
“E aqueles três pontos ali embaixo, tá vendo? São as patas do centauro.”
“Hum…”
“Tá vendo mesmo?”
“Mais ou menos…”
Eu tentei, apertei os olhos, recorri à imaginação, me forcei a visualizar o que pude. Mas não vi nada. Só pontos brilhantes esparsos, sem nenhuma ordem definida.
“Tá difícil de ver.”
“Deixa eu te mostrar a foto no celular.”
Ele digitou rapidamente no buscador e abriu a imagem. Ainda assim, não fui capaz de estabelecer qualquer relação entre aquelas estrelas aleatoriamente distribuídas no espaço-tempo. Como povos antigos visualizaram não só essa, mas milhares de outras constelações e imagens?
Depois de uns minutos, me resignei à impossibilidade do aprendizado ancestral de contemplar o céu. Não compreendi a mensagem dos astros. Ficamos em silêncio, ignorando o frio em pleno verão tropical, enquanto eu disfarçava a frustração.
Abruptamente empolgada e tentando preencher o vácuo sonoro, perguntei: “Tu não acha muito louco a gente literalmente enxergar o passado quando olha para o céu?”.
“Acho”, ele respondeu, bastante contemplativo. Eu soube imediatamente que nunca esqueceria a feição de admiração e espanto dele olhando o céu naquela hora.
Sempre gostei como qualquer pergunta aleatória que eu fizesse nunca era um problema — ele embarcava em todas as conversas sem fio condutor que eu puxava. Como um bom viajante hermético aberto às surpresas, elas eram uma nova possibilidade de aprendizado e reflexão, entregue como a única oportunidade possível naquele momento. Quando ele respondia: “boa pergunta, quero falar mais sobre isso”, eu sabia que tinha inquirido a coisa certa.
Incapazes de continuar ignorando o vento, entramos na cabana em seguida, sabendo que o relógio cronológico corria contra a viagem de final de semana em que escapamos de uma metrópole. Acima de tudo, sabíamos que Cronos limitava a duração do que tentávamos desenhar entre a gente, que o prazo de validade aproximava-se da expiração nessa linha do tempo finita.
Enquanto isso, fingíamos que não havia um fantasma que nos acompanhava no café da manhã e agíamos como se não fosse estranho alcançar o bule àquele intruso. “Quem o chamou?”, eu me perguntava. “Achei que já o tivesse enterrado há anos…”, ruminava, sem proferir nada em voz alta. Mas o defunto dormia no quarto ao lado e sorria amarelo, muito encabulado, quando me via escovando os dentes pela manhã.
Não surpreende que as reticências fossem parte de todas as nossas frases, em uma incapacidade dolorida de entrega mútua, na decisão nem sequer proferida de não usarmos rótulos.
Como quem liga pontos imaginários e não vislumbra qualquer ordem no caos do Universo, perdi mensagens importantes naqueles meses há mais de dois anos, encarcerada em um calendário gregoriano rígido. Muitas mensagens não encontraram eco. Quase todas, na verdade. É que primeiro a gente vive. Depois, a gente compreende (e também nem sempre).
No dia da nossa despedida, quando ele seguiu o próprio caminho por estradas latinas, fui à minha primeira aula de skate. Saí de um portal e entrei em outro, juntando os cacos de vários “e se” enfileirados e terminando com um grande entusiasmo pela vida nas mãos.
Esse homem me entregou a chave que abriu uma porta dentro de mim: a de encarnar o próprio Hermes que me habita. Dois anos depois, cá estou sem CEP fixo, tentando encontrar ordem em estrelas do céu baiano em um solstício de inverno em que espero, com paciência e fé arranhada, uma semente germinar. Dessa vez, estou em solitude física no meio de uma floresta em cidade litorânea, guardada por constelações que aperto os olhos para enxergar.
2. A confiança no invisível
Ainda hoje, vislumbrar imagens no meio desses pontos esparsos é difícil, sobretudo quando o salto no vazio exige coragem profunda, quando tudo o que não é ofusca o que já é. Em constante mutação, é preciso ressignificar em movimento, olhar a serpente nos olhos, realizar mais alquimia.
Enumero sincronicidades, destrincho sonhos, escavo símbolos, tentando estabelecer que não sou só um amontoado de células perdidas no Universo. E pergunto retoricamente: não foi estranho eu tatuar uma arqueira no braço direito meses depois do encontro com aquele homem, não foi uma coincidência hermética o suficiente estar envolvida com uma pessoa encarnada no arquétipo de Hermes, não é muito óbvio ele comprar um arco e uma flecha antes de sair viajando de novo, não permanece absolutamente incontestável aquilo naquele momento naquele dia naquela noite naquele final de fevereiro frio em pleno verão? O que me diz Sagitário? Como confiar que assim em cima como embaixo haverá uma ordem? Não é tudo somente uma grande viagem na maionese? Eu tô ficando louca?
Dizem que a mudança nem sempre vem acompanhada de trompetes, fogos de artifício ou serpentina. Quase sempre é de um silêncio estrondoso, confusão mental e uma sirene esparsa ecoando ao fundo. Talvez por isso eu tente ler os astros, esboce uma ordem caótica para ordenar o caos e contemple as estrelas com uma fé arranhada. Até porque a vida concreta que me impeliram a seguir também não me contempla. Ela embaça a mágica do invisível.
Nesta semana, o solstício de inverno se aprochegou e se enroscou com a noite mais longa do ano a tiracolo. Escura como útero, solo, caverna, como tudo que germina, gesta, revela. É no escuro que enxergamos melhor com o olho de dentro.
Posso não ver a constelação, mas ela está lá; viram antes de mim, verão depois. Me resta ter paciência e encarar o fantasma que ainda sorri no café da manhã — mas que se esvai à medida que o liberto. Itacaré é úmida como uma caverna e me abraça nesse desejo atendido de descanso, solitude, mergulho. O que me impulsiona é a decisão de enxergar o céu com o olho de dentro.
Hora do chá
Semana que vem já envio a Artemísia de um novo destino. Volto a Salvador para uma temporada antes de um retorno-relâmpago ao Rio Grande do Sul. O itinerário das próximas semanas está agitado, porque em agosto reencontro um destino que já visitei três vezes: um país que é muito importante para mim. 7 anos depois, pisarei naquele solo sendo uma pessoa completamente diferente da versão de 23 anos que o deixou pela última vez — o que me anima muito.
Tenho trabalhado bastante em projetos profissionais nestas semanas em Itacaré e esperado essa gestação interna da qual falo nesta edição se completar. Como é bonito também se perceber em constante mudança, né? Apesar de desafiador, é um processo que reforça que somos Natureza.
Também relembro que a Artemísia agora tem uma versão paga, na qual os assinantes recebem textos exclusivos destrinchando símbolos, sonhos e mergulhando no invisível que torna uma vida autêntica e criativa. Assinaturas em grupo contam com 10% de desconto :)
Obrigada por acompanharem este espaço que, assim como tudo que é vivo, também está em constante transformação!
também não consigo enxergar nada nas estrelas, mas sigo confiando no universo...