O resgate da minha vida criativa - Artemísia #1
Uma newsletter sobre estimular a capacidade de sonhar, integrar as aventuras cotidianas em uma narrativa ampla e regenerar a natureza de dentro e de fora - de dentro para fora
Enluto a queda dos blogs até hoje, como uma viúva que não esquece do companheiro de anos. Segui em frente, conheci outras plataformas, me envolvi, construí uma história, fui feliz. Mas volta e meia ainda dou aquela olhadinha para trás — e suspiro de saudade. Quedou-se com aquele par romântico uma parte importante minha.
Quando era adolescente, colecionei vários desses endereços virtuais em que escrevia livremente sobre minhas experiências, dúvidas, sonhos e anseios. Aos 12 anos, aprendi a mexer sozinha em códigos HTML para personalizar o layout de um finado .zip.net, hospedado no UOL. Anos depois, migrei para o sistema do blogspot, em um blog que alimentei até o segundo ano de faculdade. Em algum momento de 2014, entendi que deixar aqueles textos no ar era embaraçoso. Vai que digitassem meu nome em um buscador e dessem de cara com aquele amontoado de palavras, muitas das quais nem me representavam mais tão bem…
No início dos anos 2000, os blogs estavam no auge. Pipocavam endereços virtuais com textos longos, templates extremamente duvidosos, gifs piscantes, pouco contraste de fundo, letra miúda e caixas de som que disparavam uma música sem a gente apertar o play (o que, de forma curiosa, é ainda menos irritante do que propagandas que sobem na tela e não encontramos o botão para fechar). O meu blog mais duradouro estampou um layout cor de rosa e azul-bebê com uma foto da Paris Hilton segurando um cachorrinho, e recepcionava os visitantes com a canção Come Clean, da Hilary Duff. (E eu juro que eu tinha muitos leitores! É sério!)
Os blogs eram espaços de escrita sobre minhas experiências, percepções, gostos, filmes, leituras e as dúvidas adolescentes de uma menina interiorana que desejava romper os limites da cidade pequena. Eu me encontrei naquele lugar. E o melhor: conheci muitas pessoas iguais a mim, o que foi um afago na solidão da puberdade. Dividir experiências de forma livre, sem saber exatamente em quem aquelas palavras chegariam, moldou muito a maneira como resolvo desafios e como gosto de consumir conteúdo online até hoje.
Confesso que nunca superei muito bem a decadência dessa linguagem virtual, que migrou, muito alterada e com mais filtros, para o Instagram e o TikTok. Nem me adaptei completamente à rapidez dos vídeos e dos stories. Vejam, não estou aqui defendendo o regresso aos primórdios da internet, nem a queda dos vídeos de dancinhas — inclusive, os consumo. Já tive um Instagram literário duradouro que me trouxe alegria e faz mais ou menos um ano e meio que compartilho, bem livremente, meu dia a dia no Instagram, e colho bons resultados e trocas. Mas ainda não estava confortável, se é que vocês me entendem.
O que compreendi, olhando para o que todo esse processo como blogueira me ensinou, é que no resgate da minha vida criativa, a escrita em primeira pessoa sobre as minhas vivências, sonhos e aventuras, e a troca sincera que se gera em ambientes assim é primordial. E foi para isso, principalmente, que nasceu a newsletter que você lê agora: como uma medicina de resgate para lembrar que precisamos usar nossa voz com autenticidade e fluidez, em espaços que contemplem a maneira com a qual ela deseja se expressar.
Faz um tempo que tenho certeza de que a natureza tem todas as respostas. Essa lucidez no assunto foi forjada durante os anos em que trabalhei de perto com agricultura familiar e agroecologia, coliderando uma agência de comunicação especializada nessas áreas. Foi me embrenhando entre plantas, cultivos de alimentos e árvores que reintegrei partes há muito adormecidas numa sociedade em que reina a lógica patriarcal, a competição e a rapidez em busca de conquistas moldadas pelo ego.
Olhar com afeto para o que nos rodeia e apreciar os ciclos de cada coisa — assim como os de animais e seres aparentemente inanimados, como plantas — me trouxe uma nova percepção, mais alinhada com quem eu já fui quando criança - e, no caso desta newsletter, com minha versão adolescente.
Nesse processo cheio de percalços, a integração do arquétipo de Ártemis foi o que me guiou. Ártemis para os gregos, ou Diana para os romanos, é a deusa que rege a caça e as florestas, aventureira que empunha seu arco e flecha e está sempre acompanhada de animais, mesclando força e coragem com pureza e inocência. Relembrar esse arquétipo primariamente selvagem foi um remédio. Não à toa, Ártemis batiza a erva que nomeia esta newsletter.
A artemísia foi, por muito tempo, considerada a erva da bruxaria. Durante a Idade Média, muitas mulheres a usavam para cura e proteções espirituais. Há relatos de que a planta favorece sonhos vívidos e proféticos, além de ser utilizada como medicina em ciclos femininos — menstruação e sintomas da menopausa, por exemplo. É associada ao feminino e à deusa Ártemis, em homenagem à qual foi batizada. Artemisia vulgaris é a variedade mais comum dessa erva.
Em alguns casos, artemísia é descrita como a erva mais poderosa da terra (posição com a qual humildemente discordo, porque nada é mais ou menos do que os demais, tudo só é). Portanto, artemísia é uma erva ligada à magia, à estimulação de sonhos vívidos, à regulação dos ciclos femininos. Tudo o que eu preciso para que minha vida criativa simplesmente volte a fluir, que a rigidez dos músculos seja amenizada e as palavras voem livremente de novo, seja lá em quem elas forem chegar.
Sonhar dormindo, sonhar acordada, sonhar o coletivo
Aventurar-se dentro de si, aventurar-se no mundo
Regenerar a natureza, restaurar a alma infantil
De forma resumida, poderia ter colocado o subtítulo desta newsletter apenas como “o resgate da minha vida criativa”. Porque é. Mas esse embrenhamento sutil por uma vida com mais significado é composto pela tríade sonhos, aventuras e regeneração — algo que tenho integrado há vários anos e que me proporcionou diversos insights que devo aprofundar em outros textos.
Quando me refiro a sonhos, aqui, pretendo abarcar a ideia de sonhar dormindo, sonhar acordada e sonhar coletivamente. Como diz Davi Kopenawa, líder e xamã yanomami, os brancos só sonham consigo mesmos. Precisamos, também, sonhar com outros mundos, o que passa pela compreensão de linguagens simbólicas ancestrais, compartilhar visões e escutar.
O indivíduo existe no coletivo, e o coletivo habita, molda e age sobre o indivíduo. Tudo coexiste. Olhando pra natureza, precisamos aprender a fazer isso de forma cada vez mais harmônica.
Aventuras são as que empreendemos mergulhando em nós mesmos e as que vivemos quando experimentamos coisas que não nos permitíamos. Por exemplo, minha Ártemis brilhou aprendendo a andar de skate (de verdade, foi o ponto alto do meu ano de 2023). Foi uma aventura interna, que teve efeitos em cascata gigantescos em absolutamente todos os aspectos da minha vida. Mas também me aventuro aprendendo sobre magia, bruxaria moderna, simbolismo e Relações Internacionais. Tudo é um grande salto no escuro — e essas pequenas conquistas são parte de uma narrativa maior, tanto de uma história pessoal quanto de uma história coletiva.
Por fim, mas não menos importante, chegamos ao aspecto de regeneração. Sou entusiasta e apaixonada por essa palavra e pelos significados que ela carrega. Acredito que, neste momento histórico que vivemos, precisamos regenerar a nós mesmos, as relações com os outros e conosco — e, claro, é urgente regenerar a Terra diante da crise climática.
Nesse desafio até então inédito que a humanidade atravessa, precisamos não somente plantar árvores, mas também mergulhar em sabedorias que deliberadamente nos fizeram esquecer (como as que são estimuladas pela artemisia vulgaris). Deixar um legado melhor às gerações futuras parte de uma visão holística de integração com a natureza.
Cada um tem um papel único nessa transição. Estou vivenciando o meu, enquanto caminho com um pouco de apreensão, mas de peito aberto. Na minha biografia profissional, ouso abrir o texto dizendo que “minha principal ferramenta criativa é a escrita”. Não sei viver sem palavras. Nós as habitamos para compreender, explicar, esquadrinhar, medir, confundir, criar realidades, contestar narrativas e subverter o status quo.
Para potencializar efeitos, a erva associada à magia e à bruxaria é a medicina que pode proporcionar algumas introvisões que nos guiem nesse momento crucial. Também estou curiosa para saber o que vai sair daqui.
Falando em palavras…
Assisti, na semana entre o Natal e o Ano Novo, ao documentário As Línguas da nossa Língua, disponível no streaming da HBO. Dirigido por Estêvão Ciavatta, a série de quatro episódios navega pela formação e pelo desenvolvimento da pluralidade das línguas que se falam no Brasil, culminando no que já chamam hoje de “língua brasileira”, em suas centenas de variações, influências e brasilidades.
Fiquei muito tocada pela narrativa, que trouxe a formação da nossa língua, oriunda do galego, que posteriormente se transformou no português (falado em Portugal) e que, devido à colonização e à exploração das nossas terras, foi exportado ao Brasil. A língua é viva e moldada pelas pessoas que a utilizam. É morada, é uma pátria em si mesma.
A produção também empreende incursões pela língua tupi e por diversas línguas indígenas, pelo iorubá e outras línguas africanas, pelo pajubá e pela linguagem neutra. Há entrevistas com nomes como Caetano Veloso, Nélida Piñon (a quem a obra é dedicada) e Alberto Mussa. Vale muito o play!
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Lua Nova, solstício de Verão ☀️🌘
Entramos oficialmente, nesta quinta-feira, 11 de janeiro, na primeira Lua Nova do solstício de Verão do Hemisfério Sul. É um ciclo de expansão, de luz, de vida, marcado pela estação mais quente do ano. A Lua Nova sela um início de ciclo, um começo em que podemos intencionar o que desejamos criar. Nada mau para lançar esse resgate expansivo de uma parte feminina de fluidez e criatividade.
Agora, sim, dá pra dizer que 2024 começou! Que não tenhamos medo de brilhar — o mundo nos precisa em nosso eixo de força.
E por hoje é isso. Até a próxima edição da Artemísia! :)
Sintam-se à vontade para me escrever, porque o que mais gosto desse compartilhamento são as trocas. Já estou animada para seguirmos conversando, sonhando, nos aventurando e regenerando a nós e ao mundo.
11 de janeiro de 2024, primeira Lua Nova do Solstício de Verão no Hemisfério Sul.
Oi Cândida, eu de novo, agora na sua newsletter!
Sempre gosto de conhecer o trabalho de quem escreve e foi uma delícia poder ler esse texto e descobrir um tanto de você que também vive em mim.
Desde à falta de familiaridade com o digital dos anos 2024 (rs), até a certeza de que a natureza é a maior professora, passando por este resgate da criatividade.
Ah, e claro, pela alegria que é trocar tanto com quem me lê quanto com quem escreve!
Seguimos lado a lado!
Beijos
Nossa, parece que você escreveu um texto sobre mim! Me identifiquei com tudo, história parecida e interesses idem 😅 Vida longa à Artemísia.