Eu não sou importante - Artemísia #9
Fazer as pazes com minha desimportância me deu uma tranquilidade praticamente inabalável
É uma convicção quase infantil que a gente leva na mochila durante boa parte dos 20 e poucos: a de que somos importantes, que podemos mudar o mundo e salvar pessoas. Eu não sei bem quem incutiu isso nas nossas cacholas, se todos aqueles desenhos animados ou blockbusters, mas muitos amigos meus também sofreram com esse elevado senso de importância. À medida que esse fardo autoimposto, um resquício pueril de inocência, fica pesado demais para carregar, precisamos despir a capa de super-heróis às avessas.
Com burnouts consecutivos acumulados entre os 24 e os 26 anos de idade e sustentando uma grande frustração, internalizei, com bastante dificuldade e resistência, a seguinte nova convicção: não sou importante, não vou mudar o mundo (sozinha) e pior, empunhando espada, escudo e muita raiva do sistema, não salvei ninguém — muito menos a mim.
Protestei. Chorei em posição fetal na cama. Anestesiei a sensação com mais trabalho. Olhei pela janela sentindo coisas inomináveis por um despresidente e sua corja. Lamentei o fato de que nem todo mundo concordava com minha visão de mundo, nem todo mundo percebia a agricultura como o tema mais importante de todos, nem todo mundo (aliás, ninguém) se importava tanto assim com o que eu fazia. Me enfurnei sozinha num cubículo com paredes recém pintadas de cores vivas, paguei um curso sobre interpretação de sonhos e ali começou um retorno à linda noção-casa de insignificância pessoal.
Queimei a capa surrada de super-heroína exausta, devolvi a espada à pedra da qual só o Rei Arthur vai tirar e descansei. Que alívio.
O processo de retorno à própria insignificância, porém, é composto pela reconciliação de paradoxos.
Eu não sou especial, mas sou especial.
Eu não sou única, mas sou única.
Eu não sou tão importante assim, mas sou importante.
Eu não tenho insights iluminados e dissociados de um Zeitgeist, mas tenho um ponto de vista relevante.
Eu não sou indispensável e insubstituível, mas sou insubstituível, sim — ao meu modo.
Eu não vou mudar o mundo, mas sou parte da transformação inserida em um contexto coletivo. E ali, naquele espaço gigante que parece amorfo, eu sou importante, única, especial e proporciono contribuições que somente eu poderia dar. Mas, se eu não quiser externá-las, outra pessoa vai fazer isso em outro momento — e tudo bem, o mundo vai continuar girando, todos vão seguir suas vidas e as coisas vão se encaixar.
Nada é sobre mim. Nada, nadica de nada.
Em vez de continuar esperneando com as afirmações acima, a reintegração dessas aparentes dicotomias me deu uma paz que não sei nem descrever. Eu não vou salvar ninguém. E que bom assumir o papel de uma reles mortal em seu caminho de aprendizado individual, integrado a um todo por aspectos geracionais, globalizantes e por um Inconsciente coletivo.
Ainda assim, percorro uma jornada única que às vezes vira uma rota tortuosa, com lombas, montanhas, rios e animais selvagens, mas é um caminho que é meu. Se isso não é mágico e tranquilizante, não sei o que é.
A arte, nesse percurso de ressignificação, foi e continua sendo alentadora. Ela não serve para nada, mas se quiser também pode servir. Como expressão genuína da alma, ela apenas é. Tenho me aferrado a isso, como já discuti em outras edições da newsletter: a apenas ser. E em momentos de distração, recebemos confirmações.
No domingo pré-Carnaval fazia um calor absurdo na capital gaúcha. Decidi zarpar sozinha para uma cachoeira a 80 km de onde moro. Depois de escrever, meditar, ficar encantada com o tanto de borboletas azuis em volta e prosseguir na minha leitura sobre criatividade, uma mulher que tem um centro de umbanda na região metropolitana de Porto Alegre puxou assunto comigo. Confirmações: eu quero aprender sobre os orixás, e ela até me explicou um pouco sobre eles.
Pronta para ir embora, estiquei o passeio em uma galeria de arte a céu aberto, em que uma artista cola azulejos e faz peças de mosaico esplêndidas. Cheguei, conversei com o recepcionista e exclamei: “Como há borboletas aqui!” E ele disse: “Acabei de ver, pela primeira vez, aquela borboleta 88. Me falaram que é rara, até tirei uma foto.”
Fiquei estupefata! Quero ver uma borboleta 88 há anos!
Enquanto conhecia o espaço, desejei, em cada canto, topar com a dita cuja.
Pronta para ir embora, no meu caminho em direção à saída, o recepcionista me interpelou: “Já viu essa parte aqui? São obras novas!” E me guiou rampa acima. Fiquei admirando os mosaicos, muito distraída com meus pensamentos, que estavam caoticamente mais ou menos seguindo essa linha: “nossa, como existem possibilidades infinitas de criação. Que coisa extraordinária, não entendo nada dessa obra e, ainda assim, como é bonita. Que padrão esquisito e fascinante. O mundo é essa infinita fonte de inspiração. Uau, também posso dar mais vazão ao que deseja sair de mim!”
Olho para a minha bolsa a tiracolo, porque percebo um movimento diferente, e dou de cara com uma borboleta 88 pousada sobre o tecido de crochê. Quase chorei.

Vivo outro dilema: trabalhar com propósito, em empresas das quais eu “compro” a causa. Já prendi o pé nessa armadilha tantas vezes que ele está cheio de cicatrizes. Começamos a aceitar pouco porque o muito fica atrelado à noção de importância excessiva da causa defendida. “É claro que eu vou dizer ‘sim’, olha que causa nobre. Se eu não fizer isso, quem fará???”
Só que depois ecoa a pergunta, sem resposta, no ar: e o dinheiro? Podemos almejar bons salários trabalhando em lugares tóxicos, para cobrir o valor da terapia, dos remédios e das férias que suamos muito para pagar. Só que incutiram, veladamente, que é feio falar de dinheiro quando se trabalha atrelada a causas maiores.
Bom, dá para entender: alguém já viu o Super Homem cobrar o salvamento? Ele faz por amor, poxa!
Aos quase 30, eu também quero ser paga — bem paga, vamos ser honestos. Trabalho voluntário eu já tenho um, e sopeso muito bem os prós e os contras com certa regularidade para não cair na escassez. Ou seja, estou vigilante. Não dá para desequilibrar essa balança, senão o propósito nos enreda como trabalho mal remunerado ou precário antes mesmo de nos darmos conta.
Se ouço alguém, em uma empresa, indústria, startup, governo, seja lá o que for, principalmente em momentos cruciais ou tensos, falando que quer “mudar o mundo”, que tem “uma missão muito linda”, que “nosso propósito é maior pipipi popopó”, corro na velocidade da luz na direção oposta — a mesma que uso para fugir de macho workaholic. É tóxico, pode anotar.
O filme “Soul” retrata muito bem as ciladas desse excesso de importância em propósitos externos. Na animação da Pixar, o músico Joe morre no dia em que realizaria seu maior sonho, que era se apresentar ao lado de uma famosa cantora de jazz. Do outro lado da vida, ele se despe de muitas ideias pré-concebidas do que seria felicidade e descobre que o propósito de tudo é apenas estar vivo — aproveitando as pequenas coisinhas, como a luz do Sol, o farfalhar e o cheiro das folhas, as amizades, momentos com as pessoas que se gosta, uma comida boa, uma paisagem estonteante, uma flor num buraco de calçada, uma borboleta 88 pousada desavisadamente sobre a bolsa. Todo o resto é bobagem, apetrechos que até nos aproximam da nossa alma, se soubermos usá-los com discernimento, mas, ainda assim, secundários.
Mudar o mundo? Salvar o planeta? Não, obrigada. Minha versão idealista está em reabilitação, expandindo o autoconhecimento e tendo certeza absoluta que o reconhecimento da desimportância da própria importância é o caminho. Queimei a capa de super-heroína. Sou humana — e, por isso mesmo, ainda acredito na expressão da minha alma, em transformações coletivas e em trabalhar com o que se gosta ganhando dinheiro.
Hora do chá
Confio que faço as leituras certas nas horas certas. Na primeira viagem que fiz à Alemanha, quando eu tinha 16 anos, comprei o livro “Eat, Pray, Love”, da Elizabeth Gilbert, que tinha sido recém adaptado ao cinema com a Julia Roberts como protagonista. Tentei ler várias vezes e nunca avancei — seja porque a história não me fisgava ou porque o meu inglês não estava tão afiado. Comecei de novo no domingo e estou devorando. Gosto muito do senso de humor refinado da autora e dessa jornada espiritual de redescoberta de si mesma por meio de viagens.
Testei, no meu Instagram, uns vídeos nos stories esta semana, e gostei muito das trocas que eles proporcionaram. Sinto que o home office para a mulher solteira pode ser solitário, e às vezes eu só queria comentar amenidades com os colegas do trabalho. No caso, eu queria reclamar da playlist da professora de ginástica funcional, que acha uma ótima ideia nos colocar para fazer exercícios repetidos e chatos ouvindo rock antigo e eletrônico soft. Pergunta sincera: vocês treinam escutando o quê?
É isso, gente! Obrigada a quem lê meus textos e me retorna, seja aqui ou em redes sociais, comentando sobre eles. Pra mim, reforço que são sempre muito boas essas trocas.
Até semana que vem! :)