Como o skate mudou a minha vida - Artemísia #3
Não foi só um esporte, uma experimentação, uma loucura pré-30 anos. Foi um portal — e eu só precisava atravessar a rua
Há um senso de possibilidade infinito que só acessamos em momentos mágicos, particulares e inesperados. Eles aparecem como resultado de um ato de coragem, de um “sim” que veio nem sabemos de que parte nossa. Podemos topar com vários desses momentos durante a vida — o Universo é generoso. A verdade é que, sustentando aquele “sim”, a chave que carregávamos o tempo todo com uma inquietação aflita finalmente gira na fechadura correta. E sentimos na hora que algo mudou a partir daquele momento, inaugurando uma nova versão nossa, tão surpreendente que até nós ficamos um pouco desnorteados no começo. “Nossa, sou eu mesmo que tô fazendo isso?”, pensamos. As transformações que se seguem àquele eventinho aparentemente minúsculo vêm em cascata, não se restringindo ao mero ato tachado como doido por uns desavisados.
Aprender a andar de skate foi isso para mim. Atravessei um portal que mudou a minha vida.
A expressão transformações “em cascata” não foi usada à toa no parágrafo anterior. A impressão que eu tive é que as mudanças vieram dessa forma mesmo: com força caudalosa, fluida, abundante. Simplesmente como um fluxo que sempre esteve lá, mas ao qual eu ainda não tinha dado vazão. O coitado estava preso por comportas de pensamentos disfuncionais, bloqueando a minha própria energia em diversos aspectos da vida.
Abri espaço para outra Cândida depois de atravessar a rua ano passado (literalmente, só atravessar a rua), dizer “sim” para aquele desejo meio maluco que surgiu nem eu sei de onde aos 28 anos, e repeti: “eu vou aprender a andar de skate nem que seja na marra”. (Felizmente, meu professor me mostrou que não precisava ser na marra, que era com amor, carinho e confiança.) Quando entendi que tudo é sobre controlar minha mente e confiar que posso fazer os movimentos corretos, inseri o exercício físico como parte da minha rotina, algo que eu tentava, sem sucesso, há pelo menos quatro anos.
Comecei a acordar antes das 7h para ir à aula de spinning. Quando pensava em desistir no meio do ciclo porque era puxado demais, olhava com determinação para a frente e repetia só para mim: “eu consigo, eu consigo, eu consigo”. Depois de uns meses, troquei o spinning pelo funcional e pela corrida. Em poucos meses, fiz duas provas de 5 quilômetros, fui à nutricionista, ganhei massa muscular e adotei uma alimentação vegana.
Por meio do skate, entendi que me colocar com curiosidade diante de cada desafio era necessário, e alterei muitas narrativas que eu já tinha contado sobre mim. Afinal, se aprendi a andar de skate, o que mais eu não era capaz de fazer?
“Tu é muito louca, guria! Uma doida varrida!!!”
Meu professor de skate disparou a frase acima umas quantas vezes durante as aulas na pista do IAPI, em Porto Alegre. Comecei as aulas na modalidade do surf skate — o que já me deixa preparada para a próxima aventura, o surf — no final de abril do ano passado, coincidentemente no mesmo dia em que me despedi de um boy que foi pegar estradas latino-americanas, seguindo a aventura que ele tinha iniciado um ano antes. Vivi um romance que me arrebatou de forma totalmente inesperada, e deixei a melancolia da despedida e dos “e se” enfileirados na cabeça para recuperar o entusiasmo pela vida. Nada é por acaso. De brinde, resgatei um monte de coisas que eu nem sabia serem possíveis — e essa descrição final serve tanto para o romance quanto para o skate. (Existem muitos portais ao longo da vida, não é? Saí de um, entrei em outro.)
Por meio do skate, descobri que sou uma doida varrida mesmo. Que bom, porque a sanidade é brega, uma prisão imposta por uma sociedade que não lida bem com a liberdade, principalmente a feminina. Vesti essa carapuça feliz da vida, abraçando totalmente o arquétipo de Ártemis — deusa que tatuei no braço um mês depois do início das aulas.
E descobri muito mais. Entendi que não era só uma aula de skate. Era uma experiência espiritual, libertadora, catártica. Chegar ao outro lado do portal me mostrou que tudo sou eu contra eu mesma — ou seja, com meus pensamentos, minha mente, os limites que eu crio. Que outras versões minhas ainda não deixei nascer por causa desses medos? Que narrativas eu repito e me impedem de avançar em direção à minha própria identidade?
Meu professor, o Gustavo (uma pessoa incrível, um alienígena de tão surreal e maravilhoso), me mostrou que preciso dar o comando certo ao corpo e confiar que consigo executar os movimentos. Confiar. Acho que essa foi a grande chave que eu virei. Quando eu não confiava, dava errado mesmo. Eu tinha que mudar a atitude antes mesmo de tentar os movimentos. O Gustavo fazia questão de parar a aula quando via que eu não estava… confiando. (É nítido quando não estamos.) E aí ele reforçava que tinha certeza de apenas uma coisa: que eu sairia andando de skate. Ele falava com tanta convicção que não me restava nada a não ser concordar.
Já consegui me equilibrar sozinha na primeira aula — com ressalvas, claro —, mas compreendi a mecânica por trás do skate, o que meu corpo precisava fazer para que o board respondesse da melhor forma. À medida que o nível de dificuldade era elevado, aumentei a compreensão sobre confiança. É preciso alternar o peso entre as pernas — tirar da perna de trás e controlar com a da frente —, sentir o board se mover com o peso do calcanhar ou da ponta do pé, olhar com confiança e coragem para onde eu quero ir, usar corretamente as mãos, controlar o centro do corpo e deixar o peito apontado pra frente.
Levei tombos por falta de confiança? Sim, não tantos porque nunca saltamos de nível nas aulas. Se a natureza não dá saltos, temos que respeitar cada etapa no esporte, óbvio. Mas a maior parte das quedas ocorreram nas horas em que, em vez de olhar para onde queria que o skate fosse, eu mirava o obstáculo temendo dar de cara com ele — e acabava dando de cara, ou de bunda, mesmo (não é assim na vida também?).
Então, o prof me lembrava: “Teu olhar é teu guia. Pra onde tu olha é para onde o skate vai.” E ríamos muito enquanto eu tentava, de novo, contornar um obstáculo à esquerda, para aprender a confiar que eu preciso olhar pra onde eu quero que o skate vire, mesmo que pareça que eu vá dar de cara no muro. Porque não vou dar de cara no muro. O board responde quando confio. Assim como a vida responde quando confio.
Meus maiores aprendizados com o skate:
Confiar. Quando eu não confiava, dava errado mesmo.
Olhar para onde quero ir, não para o obstáculo. Se olhar o obstáculo e ficar com medo, vai dar de cara no obstáculo.
Saber dar o comando certo para o corpo; ou seja, aprender as manhas. Mas aprender as manhas e não confiar não adianta. Tenho que confiar.
Soltar e curtir a vibe. É muito bom estar viva.
Me libertei de diversos medos e pré-concepções a respeito do que meu corpo é capaz. Corri riscos — e soltei. Soltei! (Soltar é algo que minha psicóloga incutia na minha cachola teimosa há três anos, e nada fazia aquilo entrar direito. Até surgir o skate.) Nunca achamos a autoconfiança perdida no mesmo lugar que a deixamos ou repetindo as mesmas coisas tóxicas que a sociedade nos fez imitar. Geralmente, é dizendo “sim” para algo que não compreendemos direito, resgatando arquétipos adormecidos.
Temos que escavar fundo pra recuperar esse senso de possibilidade infinita. Quando reencontramos essa parte tão viva na nossa infância, é indicado que aproveitemos bem e que não deixemos essa sensação morrer. Ela nos lembra do que realmente importa, e isso transforma tudo.
O skate mudou a minha vida.
Enquanto refletia sobre este texto em uma caminhada despretensiosa dois dias atrás, lembrei de outro portal que atravessei: ter conhecido um cara de forma muito aleatória, em 2018, poucos meses depois de terminar um namoro longo, ir parar num karaokê com ele, cantar Avril Lavigne e finalizar a noite com a melhor transa da minha vida até aquele momento. Foi surreal. Cheguei em outro lugar, atravessei um portal de possibilidades corporais que até hoje me surpreende. Quando conversava a respeito com minhas amigas, me limitava a dizer: “não tem explicação, eu ia para outro lugar!”. Era essa a sensação. Eu ia para outro lugar. (Um sexo bom tem dessas mesmo, não tem? Isso rende muito assunto.)
Contudo, minhas pernas não estavam firmes pra travessia, e fugi duas semanas depois, culpando os homens em geral pelo fracasso do qual eu fui corresponsável. O motivo da fuga desesperada foi simplesmente o medo de ser feliz. Um homem desses apaixonado por mim? Era porque ele não me conhecia, não porque estávamos desavisadamente buscando a mesma coisa (que no fim só reforçou os fantasmas de ambos).
Felizmente, estou trabalhando nisso. Às vezes, alguns portais nós atravessamos para dar de cara com o que ainda tem que ser transmutado. E tudo bem, são bem-vindos da mesma forma que os de aventuras radicais bem-sucedidas como o skate. De qualquer forma, romances costumam ser travessias poderosas.
Claro que skate talvez não sirva para você, que lê este texto (mas se sentir vontade de experimentar, sou entusiasta e recomendo). Porém, o que será que vai te fazer entrar em um portal, virar uma chave, adquirir uma percepção nova sobre a vida, sobre as possibilidades do teu corpo, da tua mente, da vida? O que vai resgatar uma criança que só quer sentir e experimentar, sem compromisso de ser o melhor? Qual desejo meio doido você tem e sempre deixou de lado “porque não é importante”, porque não dá dinheiro ou porque tem coisas mais urgentes pra fazer antes? Teatro, dança contemporânea, saltar de paraquedas, aprender um instrumento musical, fazer aulas de cerâmica, bordado, arte circense, pintura, colagem? Sempre me lembro de uma frase da Brené Brown nessas horas: “O que vale a pena fazer mesmo que eu fracasse?”
Nossos desejos meio malucos têm respostas interessantes. Vale a pena escutá-los — e segui-los.
Hora do chá ✨
Tenho passado meu tempo livre na companhia de uma nova empreitada: a leitura de “O Caibalion”. Como sou uma mera mortal, compreender a obra é um desafio que faz jus à grandiosidade do conhecimento que ela carrega, as Leis Herméticas — e que eu humildemente tento acessar. Ainda bem que existe a Lúcia Helena Galvão para comentar cada capítulo em aulas gratuitas — que são um diamante — no YouTube. Enquanto assisto, me pego pensando várias vezes: “ainda bem que essa mulher existe”.
Estou lendo um livro, em inglês, chamado “My Morning Routine”. Estou gostando de entender mais sobre a estruturação da rotina matinal de pessoas diferentes, desde presidentes e CEOs de companhia até esportistas de alta performance. Mudei bastante minha vida quando comecei a acordar mais cedo e estruturar uma rotina que funcionasse para mim. Parei de correr atrás do dia porque acordei tarde. Vai render assunto para outra edição da newsletter.
Reencontrei as músicas da Tiê e viciei de novo. Amo as composições, as melodias e a voz dela. Gosto especialmente do álbum Gaya, de 2017. Tem uma colaboração com o Luan Santana que ficou incrível.
Sigo praticando exercício físico todos os dias. Hoje, será o 25º. Haja endorfina para segurar os forninhos da ansiedade em janeiro, enquanto busco emprego, equilibro freelas, planejo os próximos passos e sustento saltos de fé que às vezes ainda acho malucos. Mas eu escrevi um texto todo defendendo a maluquice, então é isso aí. Aceito as consequências de seguir a intuição.
Por hoje, é isso! Me contem qual desejo meio doido vocês têm, ou qual coisa maluca já fizeram e foi um portal. Vou adorar saber e trocar ideias :)
Até semana que vem!
Adorei a reflexão. Gosto muito desse conceito das decisões que acabam gerando grandes repercussões na nossa vida. E é muito legal quando a gente percebe que normalmente são as decisões que acharíamos mais "mundanas" que acabam se revelando as mais importantes.