Avistei a Baía de Todos os Santos do alto, da janelinha do lado direito do avião. Vi o Farol da Barra, os prédios altos, os carros passando em ruas que pareciam maquetes, a água azul turquesa do mar brilhando protegida pelos orixás que regem a cultura afro-brasileira pulsante da capital baiana. Os olhos marejaram, o voo ficou silencioso — quem estava na janela daquele mesmo lado encostou a testa no vidro e admirou, extasiado.
Não é que virei São Tomé, mas é muito especial a sensação de, hoje, escolher visitar lugares que me chamam sem eu saber o porquê — e de chegar ao paraíso em uma quarta-feira trivial-nada-trivial pela manhã.
Diferente do mochilão do ano passado, porém, tenho aportado aos destinos de mansinho este ano, na pontinha dos pés, pedindo com licença, sentando no sofá com delicadeza, tomando um chá quente e indo devagar. A pressa não é sustentável - e meu ciclo menstrual é que apontou. A intensidade precisa ser abrandada em uma vida na estrada. É mais respeitoso: com o lugar, com os moradores — e comigo.
Pois então cheguei em Salvador no dia 30 de abril, em estado de profunda falta de sono. Dormi três horas na noite anterior, porque saí de madrugada de Floripa, encerrando um ciclo mágico e expansivo de três meses na capital catarinense.
Foi o único dia de sol desde que pisei meus pés na capital baiana. Um amigo — com vantagem kármica porque nasceu nesse Estado — brincou: “você trouxe chuva, foi?”. Esta noite, acordei às 4 da manhã com um caldo d’água tão intenso que peguei no sono de novo com dificuldade.
Aparentemente, trouxe chuva, sim. Peço perdão aos soteropolitanos que me leem.
Curioso que você pergunta às pessoas se elas são da Bahia e escuta, rapidamente, como resposta: “sim, graças a deus. É o melhor lugar do mundo!”.
Eu é que não discordo. Baiano já nasce com sorte: a pessoa respira o mesmo ar que Caetano, Bethânia, Gil e Gal.
Minha anfitriã de Airbnb é amiga pessoal do Caetano Veloso. Amizade de pegar praia juntos. Esse tipo!
Quando soube, no café da manhã, quase passei mal.
Nenhum lugar nos deve nada. Turista tem mania de achar que tudo tem que dar 100% certo - e que conhecer uma cidade é, necessariamente, passear pelos pontos mais famosos com um sol paradisíaco brilhando para as fotos. (E aqui escrevo como se não fosse uma turista, reflexão que faço com mais frequência do que gostaria, inclusive).
Entender as ruas de Salvador é perder-se por uma cidade sensual e misteriosa que não se mostra fácil, apesar do tom sorridente, aberto e solar. Salvador não é doce como Floripa, que tem uma vibração mágica. Salvador é intensa e marcante, respira cultura, exala a conexão com a história afro-brasileira como nenhum lugar que já pisei os pés - talvez só Cali, que é a segunda cidade latino-americana com mais população preta fora da África.
Nessa uma semana que estou aqui, passeei por alguns pontos turísticos centrais, caminhei pelo bairro onde estou hospedada, me matriculei na academia, visitei museus, comi acarajé em lugares bons e outras banquinhas duvidosas (levando um puxão de orelha da minha anfitriã!). Tomei trombas d’água em mudanças repentinas de tempo, caminhei na chuva, voltei molhada e renovada com sacolas de comida saudável para o apartamento. Vivo a vida no tom mais próximo ao “normal” que consigo. Viagem não é turismo — e apesar da flexibilidade da minha rotina, não estou de férias.
Meu ciclo menstrual é afeito à rotina. Não gosta de álcool em excesso, de privação de sono, da minha versão que diz “sim” para tudo. Ele me lembra de honrar todas as estações internas durante a viagem: não se pode estender a primavera eternamente, como em Cali, na Colômbia. Ficar quieitinha é importante, senão o corpo entende que não é seguro ovular. (Como vai procriar a espécie essa mulher que não sossega a bunda em casa e se mete em situações perigosas e estressantes?)
Descobri inegociáveis na estrada: alimentação saudável e exercício físico. Agora, chego em um novo destino e a primeira busca do Google Maps é academia. Cuido os índices de proteína, reponho vitaminas e tomo a tal creatina religiosamente. Os 30 anos não são brincadeira.
Lembro de um trecho de “Do que eu falo quando falo de corrida”, do Murakami, em que ele escreve que o fato de não emagrecer facilmente é uma bênção para ele, pois o impele ao exercício físico - o que tem vantagens sistêmicas à saúde e, por tabela, à sua profissão.
Penso o mesmo sobre meu ciclo menstrual. Um aparente capricho só me faz voltar aos eixos e cuidar do meu corpo. É uma bênção disfarçada.
Pois então cheguei a Salvador, choveu e eu só quis ficar sozinha, quieta e deitada no meu quarto lendo, assistindo série e comendo cuscuz (meu novo vício alimentício).
Três dias depois, menstruei e entendi o casulo. Em Salvador, honro ciclos. E viajar devagar tem, como vantagem, poder viver essas fases, preguiças e rompantes em quartos e casas novas. Chegar de mansinho é gostoso. O sol vai brilhar de novo na capital soteropolitana e lá vou eu jogar as tranças nesta cidade misteriosa e sensual que me chamou sei-lá-porquê.
Minha anfitriã me emprestou o livro “Bahia: imagens da terra e do povo”, de Odorico Tavares. No primeiro capítulo, o autor escreve:
“Que não se perca um minuto de estada na cidade mais cantada pelos poetas e compositores brasileiros. Há muita coisa que a Bahia tem e que não se mostra assim de primeira vista; também esta ‘cidade gorda’ tem reserva para os eleitos, para os que não a desejam encontrar na primeira esquina, sorridente e fácil.”
Ainda não temos intimidade, eu e Salvador. Ainda. Mas temos tempo, esse item precioso. O resto virá.
Hora do chá
Tenho me debruçado sobre uma leitura mais técnica da Vandana Shiva para um clube de leitura ecossocialista do qual faço parte: “Staying Alive: Women, Ecology, and Development”. O próximo encontro, em junho, será moderado por mim e outra integrante. Estou animada! A leitura avança um pouco mais devagar do que gostaria, mas é muito boa porque conversa com os temas com os quais trabalho — e que respingam nesta newsletter também: feminino, natureza, regeneração.
Aproveito que estou não só na terrinha de grandes cantores, mas também na de Jorge Amado, para prosseguir na leitura de “Capitães de Areia”. Fui à Fundação Casa de Jorge Amado no sábado, desviando da chuva intermitente que narrei nesta edição, e adorei.
Relembro que esta newsletter agora tem uma versão paga, com alguns textos exclusivos para assinantes. Assinaturas em grupos têm 10% de desconto, e você também pode oferecer uma de presente.
Obrigada por me lerem! Até a próxima edição :)
A menstruação era meu termômetro para saber como me cuidei, como me movimentei, se pausei ou não. As cólicas eram cruéis, me obrigavam a parar na força das pontadas. Que elas sejam mais gentis com você.
E que delícia é aprender a ser a turista que entende que aproveitar também é descansar, cuidar do corpo. Ainda mais em cidades deliciosas para ter momentos casulo 💛
ahhhh que delícia é essa entrega à pausa e ao silêncio, né?
Capitães da Areia é um dos meus livros preferidos. li na adolescência e fiquei completamente apaixonada pelo Pedro Bala 🥹
e seu texto me fez entender o que aconteceu comigo aos 17 anos. cheguei em Salvador para prestar vestibular, queria muito fazer cênicas na UFBA. eu te juro! no exato segundo que saí do avião e pisei em solo baiano, ouvi: “não é aqui. Salvador não é pra você”. e eu entendi aqui. aos 17 eu não tinha nenhuma célula no corpo capaz de dar conta da energia e do mistério daquela cidade. eu era muito crua de vida ainda. grata por me ajudar a encaixar mais uma pecinha aqui no meu quebra-cabeça❤️🔥