A mulher na moto voadora - Artemísia #70
Sobre refazer perguntas, espiar armários e descer ladeiras (para dentro) antes de alçar voo de novo
Estava no pátio da minha escola de infância quando ela anunciou a chegada com um ronco longo de motor que vinha do alto, me deixando atenta e deslumbrada. O rastro de fumaça pintou um longo fio no céu, como um avião a jato. Ela pousou com suavidade à minha frente, tirou o capacete e me cumprimentou. Era uma mulher em uma moto voadora.
Desafiando os estereótipos, a lógica da gravidade, da razão e da lucidez, eu também queria montar naquele veículo e voar com ela. Senti desejo do vento no rosto, de pegar velocidade, empinar a roda de trás e admirar o pequeno município gaúcho de onde venho lá do alto. Ela disse: “claro que você pode, vamos dar uma volta”.
Só que não era hora. Tudo deu errado no sonho.
Tive que descer uma ladeira a pé, chegar aos recônditos da minha própria voz e me perguntar — de novo, pela milésima vez! —, refazendo a resposta com os fios que desenrolei desde o ano passado: o que eu quero mesmo?
Em movimento, parar é ainda mais desafiador. Você precisa encontrar espaço de quietude dentro de quartos novos, equilibrando desejos antagônicos ao mesmo tempo em que anseia por conhecer espaços e esquadrinhar territórios que não te devem absolutamente nada.
Constatei, aportando de mochila em Salvador: sou outra pessoa, e os pratos que eu gostava de comer no bufê já não me satisfazem como antes. Minha mãe, que ouve meus rompantes e mudanças em chamadas de vídeo à distância, viu a minha felicidade no domingo à noite e compartilhou, alegre:
“Como tu tá feliz, filha!”
“Claro, por que eu não estaria?”, respondi, sabendo que a pele estava brilhante. “Estou exatamente onde queria estar!”, completei, muito sincera.
E ela riu quando contei que, em uma semana e meia, já parto rumo a outro destino. Senti de seguir ziguezagueando por terras brasileiras e de me dar — ainda mais — o que preciso: natureza, silêncio, solitude. Preciso disso antes de subir na moto.
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Quando criança, ouvi várias vezes que sou de Lua e que mudo rapidamente de ideia, de gostos, de hobbies. É uma verdade parcial. O Design Humano mostrou que tenho o perfil 3/5 - A experimentadora da vida. Ao receber o diagnóstico preciso do mapa à minha frente, me senti contemplada, compreendida.
Preciso de novidades. Preciso fazer coisas pela primeira vez. Preciso provar novos gostos, ver lugares, mudar o ambiente, ter histórias para contar. Pular de asa delta, fazer aulas de dança do ventre e salsa, tocar bateria, andar de skate, trabalhar em hostel, virar viajante. É assim que me lembro viva.
Então também cresci com a sombra do “tu vai enjoar de tudo, até do teu namorado” — o que não é verdade. Tive um relacionamento duradouro de seis anos e depois colecionei histórias fugazes, mas igualmente belas, como se cada uma — embora bonita e válida por si mesma — me preparasse para um reencontro mais pulsante, vivo e presente com meu Animus, antes de se consumar, de forma completa e madura, em outro relacionamento duradouro — desses que anseio, sim. Sei que nada vem sem desafios, sem mudanças, sem pequenas mortes simbólicas; mas, se fosse fácil e óbvio e pronto, qual seria a graça? Tédio não quero.
Sonhei, dia desses, que pedi para o crush abrir um armário escondido em outro cômodo. “O que tu guarda ali?”, perguntei, curiosa. Com tranquilidade, ele foi me mostrar. Estava cheio de mochilas pretas abarrotadas. Na sequência, ele sacou uma arara inteira com patins amarrados pelos cadarços.
“Você sabe andar com eles?”, ele me perguntou.
“Não, mas quero aprender”, respondi.
“Te amo!”, ele retrucou imediatamente, encantado.
O que desencadeia o meu desinteresse profundo é um homem entediante: uma pessoa previsível, que segue à risca o modelo pronto que a sociedade impõe. Dentro do armário, somente camisas polo. Nenhum patins.
Quero novidades, poxa; um homem que, do nada, se inscreva em aula de capoeira, busque aprender a pintar, fazer curso de macramê, qualquer coisa. Só não me ofereça, como cardápio fixo, um sofá com controle remoto todos os sábados à noite. (Aos 20, esse era meu menu, o que não espanta que eu contivesse desejos de rompantes meio Lila Cerullo.)
Também me surpreendo comigo; é do meu feitio, ainda bem. Não posso prometer ao homem à minha frente que vou seguir a vida toda gostando de usar roupas coloridas — já altero essa preferência agora mesmo, tentando combinar minha cartela Primavera Quente de formas mais sóbrias e refinando o armário-cápsula de mochila com peças de brechó. É bom que ele não se apaixone pela minha persona, pois ela se transforma para refletir minha essência mutante, mas solar, casada com o próprio brilho.
Posso e quero e vou prometer, porém, algo muito mais importante: que estou comprometida em me tornar cada vez mais eu mesma. Todos os dias. Com amor, presença e disciplina — disciplina que é afeita a ritmos, oscilações e à minha própria personalidade, que gosta de experimentar, de testar, de descobrir. De viver. Muito!
Posso e quero e vou prometer, também, caminhar em conjunto e respeito a essa expansão mútua de duas pessoas que se escolhem — a si mesmas primeiro; e, portanto, com inteireza transbordam um “sim” preenchido ao Outro. Duas pessoas que se olham, se veem, se admiram, se amam, se expandem auf Augenhöhe.
Quero que meu Animus abra aquele armário escondido e me mostre o que tem lá dentro. Então, naturalmente, anseio que meu parceiro abra cada mochila quando sentir de mostrar o conteúdo, mas também quero aprender a patinar, me mover com leveza e curiosidade sem me perder de mim — porque, por meio do Outro, também posso me enxergar melhor, me redescobrir, me desafiar; trazer ainda mais à luz o meu Self.
Antes de subir na moto, é este reencontro que acontece na encosta da ladeira — o que representa o mergulho em si mesma, não um ponto baixo da jornada.
O que deixa um perfil 3/5 feliz: vento no rosto, aventura. Andar de patins e de moto. E depois aprender outras coisas.
Eu quero ir mais longe — e vou —, porque a Vida tem ainda mais para me oferecer. Eu sei que tem. Na hora certa, vou subir na moto — bem à la motomami — e aprender a deslizar suave e feliz de patins. Estar viva é bom.
Hora do Chá
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E dá para acreditar que esta é a septuagésima edição desses textos sobre sonhos, aventuras e regeneração? Que caminho mágico!
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Até semana que vem!
eu amei muito essa analogia do subir na moto!
terras baianas são perfeitas pra esse mergulho interno, que bom que você veio se nutrir por aqui antes de alçar novos voos 🤎
Definiu bem o processo de individuação: se comprometer a se tornar si mesma todos os dias um pouquinho mais e ser casada com o próprio brilho 🦋