Voltar é impossível - Artemísia #38
Não se volta igual nem da esquina, que dirá de uma viagem
“Se está com saudade, é só voltar.”
“Se tudo der errado, você pode voltar.”
“Já não está na hora de voltar?”
“Quando você volta?”
“Você sabe que sempre pode voltar.”
Quando ouço as frases acima, respondo: “não é bem assim”, “não sei quando volto”, “não sei se quero voltar”, “obrigada, mas agora não volto (ainda)”.
A verdade que eu queria proferir mesmo, no lugar das respostas polidas, é só uma: voltar é impossível.
Uma amiga viajante foi assaltada em um ônibus no Peru. Policiais a roubaram 300 soles (aproximadamente R$ 450) e ameaçaram deportá-la, ainda que ela não estivesse de forma ilegal dentro do país. Foi uma situação abusiva completamente inaceitável e triste, mas fora do controle momentâneo dela. Assustada com o ocorrido, mesmo que o mal-entendido tivesse sido desfeito (com a propina retirada da sua carteira), ela escreveu a um amigo que, por sua vez, a incentivou a voltar ao Brasil.
“Voltar não é uma possibilidade. Eu queria ser acolhida, não desencorajada. Perguntei a ele: ‘as coisas não dão errado para você também no Brasil? E aí, o que você faz?’”
Ela decidiu continuar. Aliás, voltar sequer passou pela cabeça dela. Está viajando feliz até agora.
As pessoas me veem fazendo coisas que nem eu pensei que faria e dizem: “Não acredito, isso me surpreende muito! Logo você!!!”.
Os aplausos e o reconhecimento vêm quando você segue a linha — e acumula burnouts. É porque isso permite que elas também permaneçam na mesma vida de sempre, sem precisar se confrontar com uma verdade: todos podem mudar, porque todos podem - e vêm ao mundo - serem quem são.
Ainda bem que não viajo em busca dos aplausos e do reconhecimento, pois nessa armadilha eu caí enquanto tentei construir a famigerada reputação profissional, o conceito mais escorregadio que existe. Tenho vários textos, inclusive, sobre separar o que é do ego e o que é da alma, escritos ano passado, quando levantei de uma grande decepção profissional e acordei. Gosto muito deste aqui, ainda no Medium.
Não viajo só por mim, para atender ao meu desejo de aventura e de satisfação pessoal — embora, é claro, este tenha sido o empurrão.
Subjetivamente, também viajo para honrar as mulheres que vieram antes de mim, que percorreram esse caminho fechado com facão abrindo passagem. A delicadeza de uma luta não era respeitada — ainda não é. Há que suavizar a estrada, honrando a raiva que as habitava.
Viajo para satisfazer sonhos que minha avó paterna sequer podia sonhar. Ela poderia não saber, mas a liberdade que disponho de correr o mundo com um passaporte e uma mochila também eram desejos que, se estivessem ao seu alcance, ela teria alimentado.
Toda vez que me lembro que os melhores anos da vida dela foram os que ela viveu depois que meu avô faleceu eu quase choro. E entendo que um relacionamento amoroso feliz também é um objetivo para honrar a ela e todas as outras que nunca tiveram a escolha que temos hoje.
Viajo também pelas que virão depois. Pelas filhas das minhas amigas, pelas que ainda nem conheço, pelas que infelizmente vão encontrar um mundo cuja natureza está mais degradada, mas que talvez vão poder sonhar com mais liberdade, mais conexão ao seu feminino, mais espaço aberto e pavimentado para serem quem são.
Viajo pela conexão que a atividade proporciona: com outras pessoas, lugares, comigo mesma.
Viajo para honrar minhas ancestrais e minhas descendentes. Ser feliz é a maior revolução, o maior legado, o maior presente possível. Se é este o que posso deixar agora, aceito e caminho contente.
Voltar é impossível porque é óbvio que não sou mais a mesma. Já repeti umas quantas vezes que não voltarei igual à pessoa que saiu há três meses e meio de Porto Alegre. Nem sei ainda quando vou pousar novamente no Brasil — e qualquer tentativa para estipular um prazo escapa nos dedos.
Quando pisei os pés em Lima, no primeiro destino do mochilão sem roteiro que empreendo, eu já soube: não volto logo. Me senti muito diferente, me senti eu.
Voluntario, agora, em um hostel em Cali, trocando hospedagem por algumas horas na recepção e interagindo com hóspedes. (A parte da interação eu adoro, já que eu fazia isso de graça em outros destinos!) No primeiro dia, já ganhei uma aula de geopolítica gratuita de uma amiga de Taiwan, no outro dia aprendi a dançar salsa no lugar mais tradicional da cidade (e quiçá do mundo, já que Cali é a capital mundial da salsa), já fiz tour de graça pelo centro - e, assim, coleciono o que mais transforma alguém: experiências.
Esta parte é a que mais friso dentro de mim, para ver se fica grudado: eu quero aprender pelo amor, não pela dor. Quero crescer com experiências positivas, não negativas. Eu quero abrir os dois braços e abraçar muito forte essa felicidade e as oportunidades inusitadas que chegam, para além de qualquer rótulo ou profissão ou caminho linear. Eu quero dizer “sim” para a vida, eu quero ser coerente com meu entusiasmo.
“Se tudo der errado, você volta.”
“Não, eu continuo.”
E isso não é só em uma viagem.
"voltar" é um conceito abstrato que a gente criou para tentar ter algum conforto. porque, como você disse, a gente não "volta" nem da esquina. só há caminho de ida.
Caminho é só de ida, não é? <3