Roupas rasgadas, persona cambiante - Artemísia #36
O que me servia se rompe à força, o que não tem mais utilidade se perde
“Se entre as opções há um sabor que não conheço, é aquele que eu peço, mesmo que seja para não gostar.”
Uma amiga brasileira proferiu a frase acima essa semana, enquanto tomávamos café no terraço de um teatro no centro de Medellín. A frase resumiu bem o espírito viajante curioso que também me move pelas estradas sul-americanas há dois meses, e que parece um mantra a quem coloca a mochila nas costas para desbravar o mundo — e, por consequência, a si mesmo.
Da experimentação de coisas novas só existe um risco: o de mudar muito de ideia, de gostos, de direção. Estou pagando o preço e vivendo essas alterações vertiginosas, acompanhada por muitos viajantes que também não sabem muito bem onde vão aportar na semana que vem. Sozinha não estou, embora habitar essa incerteza em meio a roupas constantemente rasgadas me cause desconforto.
O Inconsciente é onipresente e, enquanto durmo, gosta de desenhar o que ocorre para ver se assim eu volto a prestar atenção à linguagem dos meus sonhos. É que é tanta novidade do lado de fora que é fácil se distrair e voltar ao concreto.
Sonho que minhas roupas rasgam. Não satisfeito, o Inconsciente consuma os rompimentos de persona na vida “real”. Não conto mais o tanto de peças que já se perderam no caminho ou que se romperam, me obrigando a descartá-las. Perdi uma calça super cara e de ótima qualidade em Iquitos — o que achei risível porque, quando a lavei, no segundo dia na cidade, pensei: “a partir de agora nem vou mais usá-la, porque ela é quente demais”. A vida se encarregou do resto. Poupa espaço na mochila.
Manchadas, rasgadas e perdidas, minhas roupas escancaram que estou reformando minha persona — isto é, a forma com que me apresento ao mundo. O que cabia já não cabe mais e se rompe à força. Ciclos. É a Vida.
Não reclamo, mas às vezes faço um beiço lembrando de uma e outra peça que gostava. Estou rotacionando blusas e calças que podem ser contadas nos dedos, lavando meticulosamente para não ficar sem o que usar. “São só roupas”, repito, sabendo que não é bem assim. É, também, a reforma profunda de como me mostro ao mundo.
O que vestir agora? O que combina comigo? Quem é essa nova pessoa? Para externar essa nova versão, preciso assentá-lá dentro de mim, e é precisamente aí que mora a incerteza. Onde tudo isso vai descambar se não sou a mesma que pousou em Lima há dois meses, nem sequer a mesma que levantou da cama, escreveu este texto e apertou o botão de “publicar”?
É unânime em viagens: ninguém volta igual.
Acho incrível o quanto tenho escutado histórias de amor e de loucuras românticas que as pessoas jamais teriam consumado em seus países de origem. Viajar 26 horas em um ônibus (essa fui eu), alterar todo o seu roteiro para passar mais tempo com o cara, comprar uma passagem específica de valor elevado só pra rever a pessoa, perder um ônibus e persegui-lo de carro até alcançá-lo (cena de novela), dizer um “eu te amo” super sincero no segundo dia (essa fui eu também, mas uma amiga minha fez o mesmo e rimos muito). O tempo contado nos dedos imprime um senso de urgência que faz bem às paixões.
Pedir sabores que nunca se provou antes te altera de forma permanente, porque em outro lugar é como se nos déssemos permissão para testar — e errar — mais. E só existe vida quando aceitamos a possibilidade do erro.
No terraço do café do teatro, eu e minha amiga brasileira compartihávamos o momento com um colombiano que me escreveu no Couchsurfing, trabalha em um museu local e se ofereceu para explicar toda a história do país pra gente. Foi maravilhoso.
O salto de fé de entrar no Couchsurfing, uma comunidade que conecta viajantes a pessoas locais em cidades do mundo todo, foi uma das escolhas mais certeiras antes de pisar os dois pés na estrada. Dali, saíram experiências muito autênticas que vou guardar para sempre: conheci um jornalista limenho de outra geração que me ajudou bastante quando cheguei a Lima; me hospedei na casa de uma tecedora em Chinchero, um povoado nas imediações de Cusco; me hospedei em um couchsurfer em Cusco que me enviou uma torta no dia do meu aniversário, em Machu Picchu pueblo; e a cereja do bolo: me apaixonei no segundo dia dessa viagem por um skatista peruano que me escreveu na plataforma.
Colocar a mochila nas costas me fez descobrir coisas que eu nem sequer sabia que poderiam existir. Roteiros, viagens de barco, formas de economizar, sabores exóticos, dormir no sofá de desconhecidos em nome da troca cultural… A vida é linda e eu sei antes mesmo de ter pego um voo para o Peru — mas o doido é que, nessa viagem, me apresenta constantemente a sensações novas que corroboram essa máxima. E isso tudo em meio ao desconforto, porque uma coisa não exclui a outra.
Enquanto caminhava, semana passada, pela Amazônia colombiana, me veio uma epifania bonita que resume esse movimento. Estava fazendo uma trilha de 30 minutos para chegar a uma comunidade indígena. Compartilhei o caminho com um espanhol que conheci dias antes no hostel, o que me deixou muito mais segura e leve (de novo, nunca se está sozinha, embora sempre estejamos sozinhas). Não enxergo muito à frente. A mata está densa e intocada — pelo menos, aqui por onde caminho. É uma estrada desconhecida, nova e aterrorizantemente linda. Mas eu sei que, em algum lugar, ainda desconhecido, eu chego.
E entendi, de um lugar muito profundo, que esta viagem não é uma fuga nem um encontro, ela é simplesmente parte do que preciso fazer. Ela é meu caminho.
Muitas coisas não tem fluído como planejei. Saí de outro projeto profissional (pedi demissão três vezes em um ano, um recorde pessoal absoluto), algumas coisas estão mais vagarosas do que gostaria na minha mente cartesiana e estou habitando um espaço de absoluta incerteza.
Não quero voltar, voltar é impossível. Mas o que eu vou fazer a partir de agora é a maior pergunta que já habitei. Abraço o grande ponto de interrogação rechaçando essa sensação esquisita e desconfortável, ao mesmo tempo em que algo, lá no fundo, quando eu fico beeeem quietinha, me diz que está tudo bem. Será que pode dar errado se estou feliz como poucas vezes já estive?
Minha amiga brasileira é formada em Medicina e considera perder um voo que sai de Barranquilla em direção ao Brasil. Aquele ticket só a levaria para fazer uma prova na qual nem sequer deseja passar. Por que não ir à Guatemala? Por que não continuar sendo fiel a esse chamado?
Essa mesma amiga — que hoje virou o case da newsletter — recém sofreu uma decepção amorosa com um colombiano que fez uma loucura pra revê-la. Ainda assim, ela prefere testar o sabor novo a ficar ruminando os “e se…”. Já sabe que dali, daquela porta, não sai nada. Mas há muitas outras.
Na pior das hipóteses, há uma boa história para contar. Na melhor, também. As roupas sempre podem ser compradas novamente, quando a nova persona estiver gestada. Até lá, habitar um espaço desconfortável provando novos sabores não precisa ser ruim — porque não é.
Hora do Chá
Pousei em Medellín no domingo e, ao sair do aeroporto e ver a cidade, em meio a Cordilheira dos Andes, pensei: “como é possível ser tão feliz chegando a um lugar novo?”. Já tive duas aulas de salsa nesse período — uma particular, totalmente inesperada —, e em breve quero dividir mais reflexões sobre a dança. Uma curiosidade: se eu escolhesse, hoje, uma carreira totalmente nova, consideraria estudar dança. Sim. Poucas coisas me colocam tão em contato com minha criança interior. E vocês? Se pudessem escolher uma carreira nova, qual escolheriam?
Este texto foi gestado e parido com a edição desta newsletter ressoando. A Ali Begun chegou com ela na melhor hora possível, enquanto eu iniciava a redação do texto que vocês receberam hoje. Leiam para vocês verem a poesia que sai das incertezas da vida.
Tenho um texto sobre ayahuasca no forno, porque participei da minha primeira cerimônia há três semanas, na Amazônia peruana. Foi mágico, profundo, potente e transformador, em uma intensidade tão larga que ainda não terminei de absorver para conseguir contar direito. Aguardem que, em breve, divido mais sobre isso e sobre minhas pesquisas informais a respeito do efeito da planta.
A Artemísia chegou a 284 assinantes. Isso é sensacional! Cada pessoa que aperta esse botão de inscrição e se dá o trabalho de ler o que escrevo me enche de alegria. Inclusive, este projeto é o que mais me enche de alegria, porque é o que faço com mais amor e vulnerabilidade. Obrigada, obrigada, obrigada!
Até semana que vem! :)
Boa viagem, Cândida! Está ótimo te acompanhar por aqui.
me encontro nesse momento também e foi muito gostoso de ler. estar no momento-entre é uma montanha-russa de “ai que delícia-nossa que cansaço”, né? 😂