Resquícios de uma personalidade antiga - Artemísia #25
Músculos fortes evitam quedas em sombras do passado
Dia desses, não evitei a autopiedade canceriana durante uma conversa com meu melhor amigo. Sem hesitar, ele me interpelou: “Para com esse drama, Cân. Isso é resquício da tua personalidade antiga”.
Ele tem razão. Volta e meia, ainda tropeço nessa Cândida — e, nesse trupicão doído e sem jeito, vamos do céu ao inferno de mãos dadas. Felizmente, porém, a visita ao fundo do poço é mais rápida do que há uns anos, quando morávamos juntas por dias e semanas a fio em uma tristeza sem bases na realidade, alimentadas por sombras, complexos e umas paranoias de brinde.
Na aula de skate, segunda-feira, meu professor me elogiou e disse que estou evitando tombos com rapidez. Nas inevitáveis falhas ao testar novos movimentos no skate, saio mais rápido do board e tenho mais firmeza nas pernas para me segurar. Quem diria que a musculação dá resultado para além da marombice da academia? Músculos firmes proporcionam bem-estar e estabilidade sistêmicos.
Achei simbólico porque, justamente naquele fim de semana, vivi uma decepção que pensei que me engolfaria, pois me fez voltar a episódios do passado. Visitei lugares que jurei não rever.
De repente, saiu uma força que eu não sei explicar a origem (ou melhor, sei: confiança no Universo e no caminho que já percorri). Mandei uns áudios xingando — com elegância — e voltei ao meu centro.
Aliviada, deixo minha nova personalidade brilhar. Essa versão tem músculos mais fortes e evita quedas com destreza.
Revisitar o passado é inevitável. Somos moldados pelo que fomos e pelo que escolhemos e conseguimos ressignificar — ou pelo que desaprendemos no retorno a nós mesmos.
É uma espiral na qual vamos e voltamos e vamos e voltamos e vamos e voltamos mil vezes e sempre de maneira diferente. Julgamos, avaliamos e escrutinamos o que já aconteceu com as lentes que utilizamos atualmente, com base no que é importante para nós agora.
Tudo o que existe é o Agora - passado e futuro são reflexos do agora, também.
Mesmo em tarefas simples, isso fica evidente. Arrumei minhas estantes de livros há uma semana e entendi o porquê evitei isso por anos. Não era o trabalho (enorme, por sinal) de reordenar as obras, mas o inevitável reencontro com quem eu já fui e não sou mais. Tanto livro que me marcou; outros tantos que não gostei e nunca mais vou ler; outros, ainda, que só fizeram sentido em determinado momento da vida; outros que eu nem sei de onde tirei, mas deixei lá porque “vai que um dia eu leia”.
Lembrei de todas as minhas versões que leram aquelas obras. A Cândida de 22 anos que pesquisava sobre Teoria da Notícia no mestrado e jurava que queria ser pesquisadora e professora universitária. A Cândida de 21 anos que escreveu um TCC sobre uma revista em língua alemã e queria seguir na pesquisa. A Cândida de 19 anos que cursava Jornalismo e sonhava em escrever grandes reportagens. A Cândida de 17 anos que não entendeu bulhufas das leituras obrigatórias do vestibular. A Cândida de 15 anos que encontrou uma pessoa tão deslocada quanto ela: Clarice Lispector. A Cândida de 10 anos que ganhou um livro de poemas da dinda (e não entendeu nenhum, mas, por algum motivo estranho, gostou disso). A Cândida de 7 anos que lia os livros da estante da casa da vó (uma série do Tio Patinhas, que reencontrei no Brique da Redenção há dois anos).
Tenho muitos livros. As estantes chegaram a envergar e eu preciso empilhar obras para poupar espaço. Era tudo dificuldade de me livrar do apego emocional. Naquele domingo da faxina bibliófila, porém, enchi uma sacola para doação, torcendo para que os livros encontrem outras pessoas leitoras e que tornem elas felizes e, talvez, mais confusas (faz parte).
Olhei para muitos daqueles títulos, entendi no que me agregaram, agradeci e deixei ir. Quero ficar leve — e preciso desenvergar as estantes.
Deixar ir é um mantra desafiador de aplicar, ainda mais para uma canceriana. Como admitir que um “sim”, mesmo que eu queira tanto dá-lo, implica em uma penca de renúncias? Como dar adeus à Cândida dramática, nostálgica, viciada em sofrer? Eu aprendi assim, caminhando nas trilhas de tantas ancestrais que não tiveram escolha senão a de repetir que “a vida é difícil”.
Li, esta semana, que nos curamos não para lidar com o trauma, mas com a alegria. Como eu reajo quando tudo à minha volta começa a dar certo? Escolho ficar e usufruir ou saio correndo? Sinto que mereço ou recuso com vergonha? Aceito aquele amor ou dou as costas e escolho abraçar o sentimento conhecido, que é a dor?
Ainda miro, em um espelho quebrado, resquícios de quem não sou mais.
A criatividade genuína e a autenticidade no viver pressupõem um processo de reescrita no que acreditávamos ser e no que tantas pessoas à volta também projetaram sobre nós. O retorno à energia feminina é saber se embalar no colo, respeitar o processo de soltura, honrar os ciclos de vida-morte-vida de si mesma.
Minha estante de livros conta essa história: o que fica combina com a Cândida entusiasmada de hoje, honra todas as que já fui e as que ainda serei. Levo, junto comigo, todas as minhas ancestrais que não tiveram escolha, ao mesmo tempo em que sonho em abrir caminho para gerações futuras de mulheres que serão mais livres. Desejo que tenhamos músculos para não envergar e leveza para levantar das quedas dando risada.
Hora do chá
Este texto não me agradou tanto assim. Ainda o escrevendo, fiquei pensando que gostaria de ter tido uma ideia melhor esta semana, mas, em meio a tantas mudanças e preocupações oriundas de um novo salto de fé, não consegui. Até sonhei com isso esta noite: que queria ter enviado um texto mais profundo sobre o retorno à energia feminina. Mas vamos lá. A criatividade é, também, disciplina e paciência com o processo.
Em períodos de mudança, quando vamos nos despedindo de uma versão conhecida e dando espaço para outra nascer, é comum, para mim, que haja o sentimento ambíguo de autocobrança excessiva combinado ao desajuste inicial me olhando no espelho. De qualquer forma, nas próximas edições, vocês também saberão mais sobre as próximas aventuras para dentro e para fora — e tenho certeza absoluta que, passado esse desconforto inicial, os resultados compensarão, até aqui.
quedas são inevitáveis, mas a maturidade nos ensina a levantar mais rápido.
Deixar ir parece difícil, pq é como se uma parte de nós fosse embora. Mas não é bom quando deixamos a parte que não nos pertence mais ir embora? Há dois anos fiz essa limpeza na estante de livros e tive as mesmas reflexões que vc. Foi difícil, mas tinha tanta coisa ali que não me tocava mais...
Amei o texto, Cândida! ✨