Intenso, fugaz e eterno - Artemísia #30
Percorri mais de 1000 quilômetros no Peru para reencontrar uma pessoa
Eu nunca tinha feito uma loucura dessas, do alto dos meus 30 anos. Repito: nunca. Mas os ventos peruanos moldaram uma versão que não reconheço. Sacolejei por 26 horas em um ônibus de Cusco a Lima para rever uma pessoa por quem me apaixonei no segundo dia da viagem que empreendo pela América do Sul.
Até o reencontro, não havia acontecido nada além de um encantamento mútuo por interesses em comum: skate, meio ambiente, viagens, aventuras, senso de humor similar e rebeldia diante de um sistema falho. Amedrontada, reneguei o que tinha aflorado já nas primeiras conversas. Como assim, euzinha apaixonada no segundo dia de viagem por um homem que me escreveu no Couchsurfing, atravessou a cidade de bicicleta para me encontrar em Miraflores e ensinou meus primeiros movimentos de street skate? De onde saiu essa pessoa? De outra dimensão?
Fugi. Entrei na minha casca de caranguejo, lambi feridas de outro peruano que há anos entendeu tudo errado, mas permaneci com aquela pulguinha coçando por dias e dias, quando já havia desembarcado com a mochila em Cusco: “e se…?” As reticências guardavam possibilidades que me remoíam demais para permanecerem sem resposta.
Decidi que precisava viver aquilo, seja lá o que viesse à superfície: ilusão, paixão, confusão, uma grande decepção, alegria, tristeza ou tudo junto. Eu estava preparada. Tinha uma brecha de uns dias antes de seguir viagem a Iquitos. Aguentaria o que fosse para responder àquela interrogação dançante de cabeça para baixo. ¿Que onda?
Comprei a passagem de ônibus a Lima com esse pacote de insegurança, sentei na janela, dormi por 13 horas seguidas e estou com dores na lombar até agora por adormecer encolhida naquele veículo de dois andares.
O ônibus demorou mais que o esperado no percurso sinuoso; o Uber que me levou da rodoviária à casa do dito-cujo, localizada na zona norte limenha, ficou preso no congestionamento; a bateria do meu celular não colaborou e tudo o que eu me perguntava era: “eu tô ficando maluca? o que eu tô fazendo?”.
Mas fui. E o que vivemos juntos por curtos, intensos, rápidos e imensos dois dias e meio durou um oceano que me debulhou em lágrimas na inevitável despedida. A viagem sempre tem que continuar.
Nunca me esqueço de uma trend do finado Twitter em que jovens compartilhavam o valor máximo que pagariam por um Uber que os levasse para uma transa casual dentro da própria cidade. Alguns responderam que chegariam só até 15 reais. Mais que isso: “tchau, muito caro”.
Quanto vale um amor de viagem?
Ano passado, visitei, em Bariloche, um homem que foi muito importante para mim, depois de compartilharmos alguns meses em Porto Alegre. Costurei aquele trecho na minha viagem a Buenos Aires. Não chacoalhei por 26 horas em um ônibus; fui de avião.
Quando uma amiga soube, ela exclamou: “Que foda cara, amiga!”
Faria tudo de novo. Sou o que sou hoje porque disse sim àquela história — e à que narro nesta edição também.
Intencionei muita coisa este ano. Uma das mais fortes talvez tenha sido um companheiro que me trate como rainha — eu usava esse adjetivo mesmo, fazendo alusão à minha Hera, por muito tempo escanteada aceitando migalhas, relacionamentos sem rótulos, amores que passavam dias sem me escrever e abafando pequenas crises de ansiedade com a distância mais larga do que me parecia aceitável.
Meditei sobre isso por meses no tapete do meu apartamento em Porto Alegre, queimando todos os incensos baratos do Zaffari e pedindo que, por favor!, dessa vez fosse diferente.
Apareceu um skatista que me chama de “reyna” (e me tratou como uma). Daqui para frente é uma incógnita onde tudo e nada pode acontecer. Mas quem tem todas as respostas?
Já vivi por anos com o freio de mão puxado em relacionamentos. “Vai acabar do mesmo”, repetia, dando de ombros e fingindo estar protegida. Quanto mais empunhamos o escudo, mais cansadas ficamos. O ferro é pesado.
Alimentando medos e monstros, eu colecionava grandes histórias de amor não vividas. Até que a grande ficha cai: ao evitarmos tudo o que pode dar errado, impedimos a entrada de tudo o que pode dar certo. A duração temporal medida no calendário gregoriano não passa de números vazios. O que conta mesmo é outra coisa.
Deixar o escudo de lado é aliviante. Não que ele fique em desuso, há que saber honrá-lo na hora certa. Mas confiar na intuição e pagar para ver é melhor do que dormir com as perguntas. Viver é melhor do que sonhar.
A janela de dois dias e meio em Lima ao lado daquela pessoa que, há três semanas, era uma completa estranha foi desfrutada intensamente. Preferi voar a Iquitos com o “e se” curado — e vivemos, andamos de skate, conversamos, tomamos emoliente, comemos comidas típicas, preparei caipirinha, caminhamos por horas pela cidade, rimos e choramos.
Chorei de felicidade por ter vivido e de tristeza por saber que, quando nos reencontrarmos, não seremos os mesmos. Chorei porque, por mais que eu quisesse e que tivesse sido lindo, ele não cabe mais na linha do tempo da minha viagem. Ele também sabe disso. O que tínhamos para viver foi vivido naquele espaço que esticamos como pudemos — e eu sempre martelo na cachola até que ponto sorvi e senti tudo o que poderia.
Chorei porque, generosamente, ele abriu a casa para mim. Chorei porque ele deixou, momentaneamente, todo o resto de lado para me receber. Chorei porque somos diferentes, é claro, mas que bonito o que vivemos: os dois estavam abertos. Ali, onde não esperava nada, encontramos tudo o que estava esperando. Chorei porque aconteceu e porque acabou. Chorei porque nenhum dos dois sabe o que vai ser agora — e tudo bem.
Perguntei: “Tu não está triste?”
E ele cravou: “Por que eu estaria triste? Antes, eu tinha um motivo para ir ao Brasil [o skate]. Agora, eu tenho dois.”
Chorei mais, incorporando o arquétipo canceriano com gosto.
Intensos, fugazes e eternos — integrando esse aparente paradoxo, internalizamos que verdadeiro é tudo que nos faz sentir vivos. Amores de viagem também. Intenso porque o tempo diminuto precisa ser esticado com a intensidade; fugazes porque o roteiro precisa seguir; eterno porque o efeito da história, por mais curta numa linha do tempo medida por horas e dias, é para sempre. Mesmo que se transforme. Talvez justamente porque se transforme.
Quando eu estava na sala de embarque a Iquitos, ele me escreveu. Respondi, meio séria, meio brincando: “não me faça chorar de novo”.
Ele me interpelou: “Não, não. A viagem continua. É tempo de desfrutar o sol de Iquitos”.
Sim, a viagem continua, as lágrimas secaram, o sol de Iquitos é maravilhoso e o futuro é incerto não só para as mochileiras apaixonadas.
Que lindo! O tempo (e a intensidade) da viagem é sempre diferente, (quase) sempre uma delícia!!! <3
Excelente! Obrigado por compartilhar essas histórias e seguimos em frente...