Abrir-se às histórias - Artemísia #35
O resultado de trocar uma pergunta e estar atenta ao que deseja emergir
O desejo de controle aparece de muitas formas. Não só na tentativa de direcionar o curso dos próximos passos da vida, no intento — impossível — de prever as curvas e os buracos da estrada, na tarefa hercúlea e ingrata de escrutinar o que ocorreu, no ensejo de escolher as palavras corretas, suaves, precisas.
O desejo de controle também aparece ao contar histórias.
A tela em branco está à sua frente. O prazo aperta. O editor do veículo deseja um pitch interessante. Os assinantes esperam a próxima edição da newsletter. E agora?
Agora você solta.
Admirava a carreira profissional da Carrie Bradshaw, protagonista de “Sex and The City”. Talvez o verbo “admirar” deva ser usado no presente — continuo admirando essa possibilidade de viver os seus textos, de uma narrativa tão bem concatenada que ela se coloca aberta às próprias vivências — e às das amigas — para escrever o que será publicado em sua coluna naquela semana.
Carrie Bradshaw vive os textos. Ela se abre às vivências para escrever a partir delas, da forma mais genuína. (Deixemos de fora o fato de ela querer controlar a história com Mr. Big, que não é defensável.) De qualquer forma, ela vive, suas amigas vivem - e as histórias aparecem. Assim, são registradas no papel e voam às pessoas que precisam delas.
Lembro de assistir à série e pensar: “esse é o emprego perfeito”. Viver, tomar cosmopolitans, sair com as amigas, conhecer pessoas, viver romances e escrever. Ora, que simples.
A criatividade emerge quando estamos abertos ao que precisa sair através de nós. Somos um canal. Não controlamos. Recebemos.
A criação mais pura é sempre assim, quando estamos, como uma antena, prontos a captar o campo.
(Uns feitiços de proteção pessoal também nunca são demais. Inclusive, faço e recomendo.)
Este ano, percebendo o quanto ficava ansiosa diante de uma tela em branco e um prazo apertado — e admitindo que o desejo de controle continuava me habitando —, troquei uma pergunta simples. Em vez de me questionar: “que história desejo contar?”, me pergunto: “que história deseja ser contada?”.
Abro-me — e recebo. Em sincronicidades, coincidências, acasos, ou no desespero do prazo apertando. Tudo é a mesma coisa.
Esta semana, vivi um dos momentos mais mágicos da minha viagem pela América do Sul. Visitei uma comunidade indígena em Letícia, na tríplice fronteira da Colômbia, Brasil e Peru. Letícia integra o território colombiano, e simplesmente seguindo as sincronicidades, fui levada a reportar sobre uma comunidade indígena formada somente por famílias expulsas por facções de seus territórios originais. A trilha de 30 minutos da rodovia à comunidade foi feita com um amigo espanhol que conheci no hostel há dois dias — ele mesmo já trabalhou com comunidades indígenas em El Salvador e Panamá e se ofereceu para me acompanhar. Completamos o percurso pela floresta amazônica com calma e sem percalços, e o curaca da comunidade disse que é porque “mambeou”; ou seja, conversou com os espíritos da floresta para avisar da vinda de uma jornalista bem cedo naquele dia. Estávamos protegidos.
Eles me esperavam com ansiedade e alegria: queriam uma repórter para mostrar uma situação específica que vivem desde que chegaram àquela terra. Eu, que retornei à reportagem por acaso e por outras sincronicidades este ano, senti o peso da responsabilidade, mas agradeço.
A história chegou. A história vai ser contada.
Este texto é uma soltura imperfeita que lembra que, às vezes, é isso mesmo o que precisa vir à tona, saltando na velocidade de dedos sôfregos em um hostel na tríplice fronteira amazônica: um texto imperfeito também. Solto e aperto o botão para publicar, pedindo baixinho para que essas palavras cheguem em quem precisa chegar.
ansioso para conhecer essa história que quer ser contada.
chegou, viu? :)